Sem esperar por resposta, Mandred pôs o machado no ombro e saiu pelo portão.
— Você tem um plano? — perguntou Oleif.
— Claro. Não se preocupe. Eu sei exatamente o que precisamos fazer. Temos de seguir os sons de luta.
O filho franziu a testa.
— E tem mais algum outro?
Mandred fez um gesto aborrecido.
— Planos demais só dão dor de cabeça e forçam as pessoas a não fazerem mais nada. Um bom líder não fica de muita conversa; ele age.
Mandred iniciou um trote rápido. Mantinha-se bem perto das paredes das casas para ser um alvo mais difícil para os atiradores. O som das espadas agora estava bem próximo.
De repente, um guerreiro saiu cambaleando de uma casa. Trazia um grande escudo redondo afivelado ao braço, com um brasão com uma cabeça branca de touro. Nuramon surgiu na porta. O elfo apertava a mão contra o lado esquerdo do quadril. Sangue escuro brotava entre seus dedos.
Um soco de Mandred derrubou o guerreiro surpreso no chão, antes mesmo que ele pudesse levantar o escudo para se proteger.
— Bom ver vocês, filhos de humanos — grasnou Nuramon. Ele deixou a espada cair e recostou-se no batente da porta, esgotado. — Venham.
Ambos seguiram o elfo para a penumbra dentro da casa. Atravessaram uma cozinha destruída e pularam por cima de dois corpos que bloqueavam a porta para a sala de jantar. Ali todas as janelas também estavam vedadas e somente filetes estreitos de luz adentravam a sala. Farodin estava deitado sobre uma longa mesa de jantar que dominava o cômodo. Havia um jovem sacerdote, de cabelos vermelhos como chamas, de pé ao seu lado, curvado sobre ele.
— É melhor não se mexer, senhor — o rapaz tentou convencer o elfo em tom de súplica. — O ferimento vai abrir de novo. E você perdeu muito sangue.
Farodin afastou o sacerdote de Tjured para o lado.
— Só vou poder ficar deitado por aí quando estivermos fora da cidade e em segurança.
— Mas você vai... — começou o sacerdote, nervoso.
Nuramon o tranquilizou.
— Mais tarde vou cuidar dos ferimentos dele.
Farodin ergueu-se e voltou-se para o filho de humanos.
— Vocês demoraram. Onde Ollowain se enfiou?
Mandred desviou o olhar do elfo.
Farodin bufou com desprezo.
— Foi o que pensei.
Em poucas palavras, ele contou sobre o ataque ao templo e de como conseguiram fugir.
— E Guillaume? — perguntou Oleif quando Farodin terminou.
O elfo apontou para as janelas bloqueadas.
— Ali na praça do templo.
Mandred e o filho atravessaram a sala e espiaram cuidadosamente por uma fresta. Havia guerreiros do rei por todos os lados. Haviam empilhado madeira do andaime destruído ao redor do carvalho sagrado. De um dos galhos da árvore pendiam, de cabeça para baixo, dois cadáveres nus e profanados. Um homem velho, de baixa estatura, e... Guillaume. Seus corpos tinham sido esfolados com golpes de vara. Flechas de besta e cabos quebrados de lanças saíam de seus torsos.
Enojado, Mandred afastou-se da janela.
— Por que estão fazendo isso? Você disse que queriam levá-lo até seu rei.
— Depois de cair do telhado, Guillaume já não estava mais apresentável — retrucou Farodin friamente. Então apertou os lábios até se tornarem um traço fino e sem cor.
— A flecha que o atingiu certamente era para Farodin — disse Nuramon com voz inexpressiva. — Eu...
— Guillaume queria a morte — interrompeu Farodin furioso. — Você sabe disso. Ele queria sair e se entregar a esses assassinos!
— Para nos salvar — retorquiu Nuramon calmamente. — Não estou repreendendo você por nada. Mas, entre Emerelle e Cabezan, Guillaume já não via mais chance de viver. Restou-lhe escolher de que forma queria morrer. Quando os guerreiros ergueram seu cadáver do chão, foram tomados por fúria cega. Eles profanaram e penduraram o seu corpo.
— E agora virão nos buscar — disse Oleif, ainda de pé à janela.
Mandred olhou para fora e praguejou. O homem que derrubara diante da porta tinha recuperado a consciência. Ele correu até a praça e gritou apontando para a casa em que se escondiam.
— Maldito falatório sobre a moral! Antes eu teria simplesmente cortado o pescoço dele.
Farodin agarrou a espada, que jazia ao seu lado sobre a mesa.
— Eles teriam vindo nos buscar de qualquer maneira. — E voltando-se para o sacerdote que cuidara de suas feridas: — Obrigado, filho de humanos. Agora procure o seu irmão de ordem e se esconda. Não poderemos mais protegê-los. — Tentou levantar-se, mas sua perna ferida não parecia disposta a carregá-lo.
Mandred segurou o elfo pelos ombros para oferecer apoio.
— Não preciso de ajuda — murmurou Farodin.
Mandred o soltou. Em pé, o elfo vacilava, mas pelo menos... Estava em pé.
— Não faz sentido lutar aqui. Vamos tentar chegar até os cavalos. Se a ponte não estiver ocupada novamente, talvez consigamos escapar. — E fazendo um gesto para Oleif: — Ajude Nuramon. Ele é menos teimoso.
— Não saiam pela porta — disse repentinamente o sacerdote ruivo. — Eu... eu também queria agradecer a vocês. Segestus, meu irmão de ordem... Eu não preciso mais procurá-lo; ele já conseguiu fugir. Há um outro caminho. Sigam-me!
Mandred olhou para Farodin.
— Não temos mais nada a perder — decidiu o elfo. — Travem as portas. Isso vai detê-los um pouco. Mas que caminho é esse que o seu irmão de ordem tomou?
O sacerdote acendeu um candeeiro e os conduziu da cozinha até uma despensa. A sala estava toda repleta de ânforas de todas as formas e tamanhos. Do teto pendiam presuntos e linguiças defumadas.
O irmão da ordem prosseguiu. Mandred ficou um pouco para trás e escondeu duas grandes linguiças defumadas debaixo da roupa. Esse era o começo de uma fuga selvagem e só Luth sabia quando seria a próxima vez que ele comeria algo razoável novamente. Também teria preferido levar uma das ânforas de vinho. O deus Tjured devia ser realmente importante para seus sacerdotes poderem manter uma despensa tão bem recheada como aquela. Estranho, pensou Mandred, ele só ouviu falar de Tjured pela primeira vez duas semanas atrás. Mas isso certamente era ignorância sua...
O jovem sacerdote levou-os até um portão baixo, atrás do qual havia uma escada que descia para as profundezas. Dali foram parar em uma sala onde estavam armazenados imensos barris. Mandred mal acreditava no que via. Nunca pensou que veria barris na vida. Eles estavam enfileirados junto às paredes, de ambos os lados. Seguindo em frente, o porão caía na escuridão. Ali estava estocado um mar inteiro de vinho!
— Pelos seios de Naida, padre, o que vocês fazem com tanto vinho? Vocês tomam banho aí dentro? — Mandred caiu na risada.
— Aniscans é uma cidade de vinicultores. O templo sempre recebe vinho de presente. Nós o comercializamos. — Ele parou, olhou para trás e contou nos dedos em silêncio os barris pelos quais passaram. Então lhes mostrou mais um pedaço de caminho e os conduziu finalmente por um vão entre dois altos barris. Oculta pela escuridão, ali abriu-se uma passagem para um túnel baixo.
— Algumas pessoas dizem que sob Aniscans há uma segunda cidade escondida. São os grandes estoques subterrâneos dos vinicultores. Muitas das câmaras são ligadas umas às outras por túneis como este. Num dia chuvoso, quem conhece os caminhos aqui embaixo consegue chegar de uma ponta a outra da cidade com os pés secos. Mas aqui também é possível se perder desesperadamente...
— Pelo menos aqui embaixo ninguém morre de sede.
O sacerdote encarou Mandred com olhar de reprovação. Então abaixou-se e desapareceu no túnel. Mandred afundou a cabeça entre os ombros, mas ainda assim bateu-a no teto uma porção de vezes durante a travessia na escuridão. A luz fraca do candeeiro era quase totalmente encoberta pelos companheiros, que andavam na frente dele, obrigando-o a seguir tateando as paredes. Ali embaixo era abafado e um cheiro azedo pairava no ar. Logo Mandred teve a sensação de o caminho estar durando uma eternidade. Ele contava os passos para se distrair. No 33 eles chegaram a um segundo estoque cheio de barris.