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Marie! murmurou ele, enganado pelo véu branco que escondia a cabeleira negra da jovem Marie! Não és tu? Não podes ser tu?... e no entanto...

Não disse Fiora eu não sou Marie. Mas sou a sua filha. E vós, quem sois vós? Conheceste-la, portanto, para reconhecerdes o seu rosto ao fim de tantos anos?

Sou o irmão mais novo dela, Christophe. Tinha dezasseis anos quando... e gostava tanto deles, dos dois! Não podeis saber quanto: eles eram a única luz da minha vida e há dezoito anos que essa luz se extinguiu. Desde então, tenho sido um infeliz...

Um soluço apertou-lhe a garganta. Então, virou-se e, arrancando o gorro, correu a ajoelhar-se de novo sob o espinheiro-alvar, como se corresse para um refúgio:

Repara murmurou Demétrios. É padre.

Com efeito, na massa emaranhada dos seus cabelos castanhos, uma tonsura recortava-se na rodela esbranquiçada que era o signo do sacerdócio.

Não deve ter tido outra alternativa! disse Léonarde com um olhar cheio de compaixão para a magra silhueta agitada pelo desgosto. Fiora juntou-se a ele e recitou uma curta oração. Em seguida, segurando no jovem pelos ombros, ajudou-o a levantar-se, oferecendo-lhe o seu lenço para que ele enxugasse o rosto cheio de lágrimas.

Eu pensava que não tinha família disse ela docemente e eis que encontro um tio jovem! Talvez vos possa ajudar a ser menos infeliz. Chamo-me Fiora e venho de Florença... E vós, vós sois da Igreja, não é verdade?

O jovem teve um gesto violento de negação, mas depois, compreendendo que a sua tonsura o traíra, enfiou raivosamente o seu gorro até às sobrancelhas:

Já não sou... Ontem fugi do mosteiro de Cíteauz, onde sufocava desde os dezassete anos e ainda não sei para onde vou, mas terá de ser para longe, para o mais longe possível!... Mas, antes, quis vir aqui rezar, ver a sua tumba pelo menos uma vez...

Quem vo-la indicou?

O nosso velho capelão, o padre Antoine Charruet, que os acompanhou até ao fim e que veio morrer no meu convento depois de o meu pai o ter expulso, como um criado desonesto, por aquilo que ele fez. O meu pai é um monstro. Não tem, nem coração, nem entranhas... Eu fui conduzido a Cíteaux três dias depois da execução, ao mesmo tempo que levavam a minha irmã mais nova, Marguerite, para as Bernardines de Tart... onde morreu durante o último Inverno...

E... a vossa mãe? Ela ainda é viva?

Infelizmente, porque a sua vida é um inferno. Vive praticamente reclusa no nosso castelo, fechada com aquele velho demónio, a quem nunca chegam as injúrias para os maldizer, a ela e aos frutos do seu ventre. Ela, tão boa e tão doce, ela, que tanto sofreu e que continua a suportar aquele calvário que Deus parece comprazer-se em prolongar. Oh, se eu pudesse libertá-la!...

Por que não procurarmos juntos o meio de o conseguir? disse Fiora, emocionada pela profunda dor daquele rapaz de olhos ferozes, de animal acossado...

Que quereis dizer? E, primeiro, por que regressastes aqui? Não éreis feliz junto desse mercador florentino cuja generosidade me foi tão gabada pelo padre Charruet?

Oh sim... mas o meu pai morreu e eu vim para ajustar velhas contas. Se vós não sabeis para onde ir, vinde connosco! Eu tomarei conta de vós...

Sois boa... mas o que eu quero é fazer a guerra, bater-me. É o único meio de acabar honrosamente com uma vida que me provoca repulsa...

Demétríos avançou e pousou a sua grande mão no ombro de Christophe:

Não achais que já chega de mortes na vossa família? Por que não procurar antes uma vida mais conforme com os vossos gostos e digna de um fidalgo?

De um fidalgo? Eu já não tenho nome, nem sequer nome próprio. Em Cíteaux era apenas o irmão Anthime, mais nada. O meu pai acha que não resta nada da nossa família...

Muito bem, arranjai outro nome! Passai a ser um antepassado, em vez de um descendente! De qualquer maneira, a vossa partida para a guerra pode esperar até amanhã? E eu creio que, até lá, ainda tendes muita coisa a dizer à... vossa sobrinha? Vinde connosco! É tarde e as portas da cidade vão, em breve, fechar-se...

Pela luz que se acendeu nos olhos do ex-monge aqueles olhos cinzentos dos Brévailles, tão parecidos com os seus! Fiora compreendeu que ele estava morto por aceitar e insistiu gentilmente:

Vinde, peço-vos! Não imaginais como fico feliz por o destino ter feito com que nos encontrássemos...

Eu também me sinto feliz pela primeira vez desde há muito tempo! Já me tinha esquecido do que isso era!

E sem se fazer rogado, mas recusando o cavalo que Fiora lhe oferecia na intenção de partilhar o de Léonarde, saltou alegremente para a garupa do de Esteban.

A jovem, entretanto, regressou à tumba e, ajoelhando-se:

Eu vim aqui para me vingar daqueles que vos puseram aqui murmurou ela. Quando a minha tarefa terminar, regressarei aqui para vos prestar contas, mas, entretanto, farei com que as outras vítimas, a vossa mãe e a vossa irmã, encontrem, pelo menos, a paz. Eu sou a vossa filha e amo-vos...

Curvando-se, a jovem beijou a terra sob a erva verde e levantou-se, trazendo nos cabelos uma série de pétalas brancas. Tal como fizera Christophe, partiu um pequeno ramo e regressou para junto dos seus companheiros:

Podemos ir disse ela com um sorriso.

Após um último sinal da cruz, os cavaleiros abandonaram a fonte de Sainte-Anne, para a água límpida da qual o Sol lançava centelhas. E regressaram em silêncio à cidade.

Era a vez de Léonarde ir em busca das suas recordações...

Quando transpôs a porta Guillaume, que abria a cidade para noroeste, o coração da solteirona batia um pouco mais depressa do que de costume, a despeito do seu feitio imperturbável. Vivera perto de dez anos naquele albergue da Cruz de Ouro, do qual já podiam ver a bela insígnia pintada e recortada e há dezoito anos que não o via. Viera para ali pouco tempo depois da morte da sua mãe, quando a sua prima Bertille, a dona do estabelecimento, lhe propusera que a ajudasse nas tarefas quotidianas. E, na verdade, Léonarde dera-se bem naquele opulento albergue, reputado em todo o ducado e mesmo no estrangeiro pelo conforto dos seus quartos e perfeição da sua cozinha. Ia lá muita gente, muitos viajantes ricos e também grandes personagens. Acontecera até o duque Filipe, em pessoa, ir jantar à Cruz de Ouro com alguns fidalgos do seu séquito. Inútil será dizer que, nessa noite, o dono, o senhor Huguet, o proprietário, esvaziara o seu albergue, para o consagrar unicamente ao seu senhor.

Sim, Léonarde Mercet gostava de estar em casa dos seus primos. Porém, bastara que uma noite tivessem posto nos seus braços um pequeno bebé, uma pequenita abandonada, para que sentisse acordar em si o que nunca pensara sentir: o instinto maternal, a necessidade de se devotar, apertar e dar todo o seu ser, sem sequer pensar numa recompensa futura. E, a partir do dia seguinte, virava deliberadamente as costas a tudo o que fora a sua vida até ali para partir à aventura com um desconhecido que ela pressentia ser tão generoso como ela. E na liteira que Francesco Beltrami comprara de propósito para aquela viagem, a pequena Fiora, baptizada na véspera no quarto do negociante, repousava nos braços de uma Léonarde infinitamente feliz...

Regressando assim ao seu ponto de partida e enquanto a sua montada descia a rua Porte-Guillaume, Léonarde pensava que fizera uma boa escolha, apesar do drama que acabara com a sua estadia em Florença e que, se tivesse de escolher de novo, faria exactamente a mesma coisa sem hesitar, porque vivera dezassete anos de verdadeira felicidade no palácio das margens do Arno. Dessa felicidade não restava nada, senão o que conhecera ao deixar Dijon: a sua ternura por Fiora e o dever de velar por ela.