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Evidentemente, agora era mais fácil. Fiora era uma mulher e uma mulher que conhecia o sofrimento, uma mulher sequiosa de vingança, que encontrara o seu semelhante em Demétrios e que não teria tréguas nem descanso enquanto tudo não estivesse acabado. Léonarde entregara-se, então, à tarefa de velar para que a criança do seu coração não saísse daquele perigoso caminho ainda mais ferida do que quando o encetara.

Quando os cavaleiros chegaram defronte do albergue, Léonarde achou que nada mudara, pelo menos aparentemente. Continuava a mesma limpeza, os mesmos cobres e estanhes rutilantes, areados à força de farelo e de braços como o mostravam as janelas abertas, cujos pequenos vidros brilhavam como antigamente, os mesmos eflúvios glutões que chegavam à rua e as mesmas lajes de belas pedras brancas da região, que todos os dias eram lavadas com grandes quantidades de água. Pelo contrário, a barriga do senhor Huguet, o proprietário que veio ao seu encontro, estava maior do que antigamente e o seu alto gorro branco, bem engomado, deixava passar umas mechas de cabelo grisalho...

Impressionado pelo porte de Fiora e de Demétrios, que cavalgavam à cabeça do grupo, o digno homem fez todos os esforços para se dobrar em dois sem grande resultado, aliás e informou os ”nobres viajantes” que a sua casa, tal como ele,

estavam ao seu inteiro serviço se tivessem a amabilidade de lhe dizer o que desejavam dele.

Saber se a casa continua tão boa como antigamente, meu bom primo declarou alegremente Léonarde, que avançara para se colocar ao lado da jovem. Nós somos viajantes cansados e... esfomeados!

O espanto fez arregalar os olhos e abrir a boca de Donatien Huguet, e o estalajadeiro teve de fazer apelo às suas lunetas para se assegurar de que não estava a ver maclass="underline"

Por todos os santos do paraíso! Léonarde! Sois mesmo vós?

Eu mesma, em carne e osso! Mais osso do que carne, aliás, tal como noutros tempos, mas vós, como estais gordo e rosado! A imagem da prosperidade! Para não dizer da abundância!

Não me queixo, não me queixo! A casa corre bem e nós mantemos a nossa reputação...

Após o que os dois primos se abraçaram com toda a efusão que se põe quando duas pessoas não se vêem há muito tempo. Os beijos estalavam sem qualquer cerimónia. Léonarde, entretanto, interrompeu-os para perguntar:

E a minha prima Bertille? Onde está ela? Quero abraçá-la. O rosto alegre de mestre Huguet pareceu cobrir-se de bruma

e até uma lágrima lhe subiu aos olhos:

-A minha pobre mulher deixou-nos há quatro anos, no dia de Saint-Fiacre e eu ainda não me consolei. Agora, é a minha irmã mais nova, Magdeleine, que me ajuda, mas, embora tenha muito boa vontade, não é tão boa como Bertille...

Abraçaram-se ambos com lágrimas, porque Léonarde era daquelas que guardam a afeição sem que a passagem dos anos mude seja o que for. Ela gostava muito de Bertille e agora chorava-a com sinceridade. Mas, desta vez, foi o estalajadeiro que rompeu o abraço:

Mas, estamos para aqui a falar da família, comovidos, e esquecemo-nos destas nobres pessoas que vos acompanham...

Há uma que vós conheceis disse Léonarde metendo o braço no de Fiora. Lembrais-vos de messire Beltrami, meu primo? Como poderia esquecê-lo? Um senhor tão generoso, tão amável... e que gostava tanto do meu coqau vin de Beaune. Há muito tempo que não o vemos...

Nem voltareis a vê-lo, infelizmente, porque também ele deixou este mundo, mas eis aqui donna Fiora, sua filha, da qual continuo a ser a governanta...

Perante aquela bela jovem cujos grandes olhos cinzentos lhe sorriam, mestre Huguet juntou as mãos com um espanto pleno de fervor, mas que, contudo, não parecia legítimo.

A... pequenita que foi baptizada aqui? Doce Jesus! Como é bela!... como a minha Bertille teria adorado vê-la!

Quanto a este senhor acrescentou Léonarde é messire Demétrios Lascaris, médico pessoal de monsenhor Lourenço de Médicis, que este envia ao Rei de França. Aquele é o seu escudeiro e este um... amigo. E agora alojai-nos bem e alimentai-nos melhor!...

Escoltados pelo estalajadeiro, que reencontrara o seu bom humor, entraram no albergue onde Magdeleine, que se parecia com o irmão no físico e no rosto bom e alegre, abraçou Léonarde e ofereceu a Fiora a sua melhor reverência. Em seguida, precedeu-as na escada para as conduzir ao mais belo quarto da casa, uma grande divisão caiada de branco e aquecida por uma tapeçaria de lã com figuras, mobilado com uma grande cama de cortinas de veludo verde e alguns bons móveis borgonheses luzindo de boa saúde e cera fina cujo perfume aromatizava ainda mais do que o ramo de giesta que punha salpicos de sol em cima de uma arca de carvalho esculpido.

Léonarde reconheceu-o de imediato, porque, a despeito dos anos, aquele quarto, graças a uma manutenção extremamente cuidada, era o mesmo para onde Francesco Beltrami levara o bebé arrancado ao furor odiento de Regnault du Hamel, o marido da sua mãe, e onde a pequena Fiora recebera o baptismo

A governanta informou a Fiora crescida disso mesmo, e olhou em volta com os olhos cheios de emoção, e deixou só por um momento para descer à cozinha, onde tinha a certeza de encontrar o senhor Huguet. Com efeito, notara na sua voz um tom bizarro quando dissera que Francesco Beltrami não vinha à Cruz de Ouro há muito tempo, um pouco como se sentisse alguma satisfação com isso. Poderia, até, ter acrescentado: ”Graças a Deus!” E a velha solteirona queria saber porquê. Léonarde surpreendeu o seu primo ocupado a medir as preciosas especiarias que destinava a um patê de vitela, cuja confecção fora já começada por um dos seus moços de cozinha. Sabedora da importância de uma tal operação, ela esperou que ele terminasse e depois puxou-o à parte para a pequena divisão onde o estalajadeiro fazia habitualmente as suas contas:

Tirai-me uma dúvida, meu primo! Há pouco, quando dissestes que não víeis messire Beltrami há muito tempo, pareceu-me que não estáveis muito desolado por isso?

Como podeis pensar assim, Léonarde? Era um cliente tão bom...

... e que, da última vez, vos deixou uma bela soma como pagamento das pequenas coisas pouco habituais que vos pediu. As... loucuras desse bom homem renderam-vos algum ouro. Isso devia justificar alguma pena, ao menos?

As faces brilhantes do senhor Huguet ficaram vermelhas como um pimentão e ele atirou um olhar rápido para a cozinha em plena actividade, para se assegurar de que ninguém o ouvia:

Algum ouro, realmente, mas também muitos sarilhos. Tendes intenção de ficar aqui muito tempo?

Bem disse Léonarde, pasmada podeis gabar-vos de ter uma curiosa maneira de compreender a hospitalidade, sem falar do vosso sentido comercial! Podemos pagar, sabeis?

Não duvido, mas compreendereis melhor quando vos disser que não penso apenas em mim, mas também em vós e naquela bela jovem. Quem diria, ao ver aquele porte de rainha, que ela era a mesma que aquele pobre pequeno ser...

Cantareis a beleza de donna Fiora mais tarde! Dizei-me antes o que se passou aqui depois da nossa partida!

A voz do estalajadeiro baixou vários tons, a ponto de a sua companheira ter de se inclinar para o ouvir melhor:

Uma verdadeira catástrofe! Esqueceram-se de nos dizer que aquela pequenita ”encontrada” era, na realidade, a filha daqueles dois infelizes executados naquele mesmo dia... E também não sabíamos que messire Beltrami tinha abandonado sire du Hamel, atado e amordaçado, no antigo hospital dos empestados, onde quase morreu de frio...

Só quase? É pena! Quanto ao resto, não sei porque havíamos de vo-lo dizer. Messire Francesco era um homem que sabia o que fazia e não achava necessário tornar públicos os seus actos. Assim, du Hamel escapou? Quem ffoi o autor desse belo golpe?

Um camponês que passava por lá a caminho das fábricas de curtumes e que ouviu uns gemidos. Foi ele que pediu ajuda. Mas vós já tínheis partido há mais de vinte e quatro horas...