O que seria um bom exemplo, porque eu odeio o adultério e vós enojais-me, por mais bela que sejais! Veremos o seguimento disto. Por agora, ficareis no acampamento sob uma boa guarda. Os que velarem por vós responderão com as suas vidas, porque não permitirei que escapeis à sorte que mereceis. Mas, por agora, temos uma cidade para conquistar... Podeis estar certa, no entanto, que não vos esqueceremos!
De novo entregue ao senhor de La Marche, a jovem ia sair quando o Temerário a deteve:
Um momento! Antes de irdes para França, já tínheis deixado alguma vez Florença?
Não, monsenhor. Nunca...
É estranho!... Pareceu-me já vos ter visto... há muito tempo...
Dizem que neste mundo todos temos um sósia e Vossa Senhoria terá encontrado uma mulher parecida comigo... Numa rua, talvez?... Ou num mercado qualquer? Ou atrás de um balcão?
Encolhendo os ombros, ele fez-lhe sinal para sair. Então, sem inclinar a cabeça um centímetro, ela ofereceu-lhe a mais graciosa e perfeita das reverências e deixou o pavilhão ducal rodeada por guardas. A noite chegara, mas a vizinhança do grande trevo estava toda iluminada por numerosos archotes, e grandes fogueiras, perto das quais se aqueciam os homens, ardiam um pouco por toda a parte.
Quando Fiora apareceu no exterior, Campobasso, que esperava sentado no mesmo tronco de árvore onde se sentara Philippe e Mathieu, lançou-se na sua direcção, mas La Marche afastou-o:
Afastai-vos! As ordens de monsenhor, o duque, são formais: não é permitida qualquer conversa...
Para onde a levais?
Para perto, mas os que estão encarregados de a vigiar respondem com as suas vidas... Estais proibido de vos aproximar.
O condottiere recuou, como se o tivessem ferido: Fiora passara por ele sem sequer lhe conceder um olhar. Então, o italiano quis entrar no pavilhão, mas, prevendo o seu gesto, os guardas já tinham cruzado as lanças... Louco de raiva, ele insultou-os sem conseguir perturbar a sua impassibilidade, pelo que se lançou no encalço da escolta, a fim de saber, pelo menos, para onde conduziam aquela que amava.
Não foi longe. Por trás do grande trevo púrpura, algumas tendas, bastante menos espaçosas, estavam atribuídas a alguns oficiais da casa ducal. Foi numa delas, deixada livre pela morte recente do seu proprietário, que La Marche fez entrar a sua prisioneira, iluminando, com um archote aceso no exterior, um interior suficientemente confortável onde se via uma cama de campanha guarnecida de almofadas e cobertores, duas arcas, das quais uma continha utensílios de toilette, um grande candeeiro de ferro, uma braseira apagada e um tapete no chão, que isolava a tenda da erva rasa sobre a qual estava montada. Uma provisão de lenha esperava encostada a uma das paredes...
Um dos soldados acendeu o fogo, enquanto, com a ajuda do archote, o capitão da guarda acendia as velas:
Vou mandar trazer-vos o jantar disse La Marche a Fiora, que se sentara, tremendo, na cama. Também vos mandarei a vossa bagagem e, amanhã, virá uma mulher ocupar-se de vós.
Muito obrigada. Mas, por que tantos cuidados? Não sou prisioneira?
Não temos aqui calabouços. Além disso, as ordens de monsenhor são que não vos falte nada. Devo velar por isso pessoalmente...
É muita bondade... mas, consentiríeis em me dizer onde se aloja messire de Selongey? É longe daqui?
Não tenho o direito de vo-lo dizer, madame. Estais aqui mais ou menos em segredo, proibida de sair ou de comunicar com quem quer que seja, para além de mim ou de quem tiver autorização de aqui entrar...
Fiora acenou com a cabeça, significando que tinha compreendido, levantou-se e foi oferecer as mãos frias ao calor da braseira que enchia o seu pequeno alojamento com um bom odor a madeira queimada. Com a cabeça vazia, como sempre acontece quando se naufraga, nem sequer tentou pensar, unicamente ocupada em sentir o seu corpo transido e dorido aquecer lentamente. Sentia nos ossos e na carne uma imensa fadiga, que atingia quase uma espécie de sofrimento; tudo muito superior à lassitude provocada por uma cavalgada de cinco ou seis léguas, mas a passagem da alegria ofuscante para um desgosto profundo fora cruel e Fiora só desejava uma coisa: dormir! Mergulhar durante horas num sono igual ao dos animais cansados, que se parecia com a morte! Mais tarde ou mais cedo seria preciso emergir, mas seria preciso, também, que a coragem e as forças estivessem restauradas. Senão, só lhe restaria procurar um sono ainda mais profundo e, sobretudo, irremediável...
Ia deitar-se sobre a cama quando, no enquadramento de tela apareceu um rapaz, vestido elegantemente com um gibão de veludo violeta bordado a prata sobre uns calções cinzentos-claros, botas curtas de pele de gamo também violeta e transportando um tabuleiro:
A nobre dama dá-me autorização para entrar? perguntou ele, inclinando-se com desembaraço.
O jovem falara em italiano e Fiora, quase maquinalmente, sorriu-lhe. Era o primeiro macho que a tratava com respeito.
Certamente! disse ela. Seremos compatriotas?
Não exactamente. Eu sou romano: Battista Colonna, dos príncipes de Paliano, pajem do meu primo, o conde de Celano, mas recentemente transferido para o serviço de monsenhor o duque de Borgonha. E agora, se me permitis, madame, falemos em francês para não inquietar as sentinelas acrescentou ele nessa língua, ao mesmo tempo que pousava o tabuleiro em cima de uma arca.
O serviço do conde de Celano não vos convinha?
Não é isso, é que eu canto bastante bem e monsenhor Carlos, que patrocina um coro de jovens cantores, gosta que eu junte a minha voz às deles. Estou, por assim dizer, emprestado.
E encarregaram-vos de me trazer o jantar, vós, que sois de uma família muito nobre, se bem compreendi? Quem vos deu essa ordem?
- Messire Olivier de La Marche. No acampamento só temos moços de armas e à falta de mulheres que saibam servir uma nobre dama florentina, messire Olivier pensou que seria mais... que termo hei-de empregar?... Ah sim: reconfortante para vós serdes servida por um rapaz nascido na península.
Eis uma atenção que não teria imaginado há apenas cinco minutos. Espero que o duque Carlos não fique contrariado?
Messire Olivier nunca faz nada sem a devida autorização de monsenhor. E agora, donna Fiora, desejo-vos bom apetite e um bom descanso!
Sabeis o meu nome?
Messire Olivier nunca esquece nada disse o jovem Colonna com uma saudação que mais pareceu uma pirueta e um alegre sorriso.
Um pouco revigorada pela visita inesperada, calorosa e encantadora do garoto devia ter uns doze anos Fiora agradeceu mentalmente ao impassível capitão da guarda, prometendo fazê-lo de viva voz quando a ocasião se apresentasse. Em seguida, descobriu que tinha fome e devorou, literalmente, o patê de enguias, os rissóis e os frutos secos que o pajem lhe trouxera com um pequeno jarro de vinho de Borgonha. Após o que, deitando-se toda vestida em cima da cama e envolvendo-se num cobertor, deixou que a fadiga a levasse para um paraíso tranquilo, onde os anjos cantavam a glória da bem-aventurada Virgem Maria... No seu quarto sumptuoso, o Temerário, com o queixo na mão, escutava a maestria da sua capela, composta por vinte e quatro rapazes e sob a direcção do mestre Adam Busnois, a interpretar um cântico a Nossa Senhora... As vozes celestes encheram a noite fria, anunciando um Inverno precoce, e no imenso acampamento, que se estendia bem para lá do lago Saint-Jean até às colinas de Malzéville, todos retiveram a respiração para tirar daquela beleza um pouco de conforto para os combates que se seguiriam.
Fiora permaneceu durante vários dias fechada na sua tenda, sem ver mais ninguém senão o jovem Battista Colonna, que lhe levava as refeições e a rapariga visivelmente aterrorizada e aparentemente muda que lhe vinha fazer uns arremedos de limpeza, trazer-lhe lenha e água e limpar a lareira e as bacias, sem que Fiora conseguisse arrancar-lhe uma palavra.