Virgínio foi arrancado de cima do corpo de Fiora, desarmado, atirado por terra e em breve se retorcia sob o joelho vigoroso pousado em cima do seu peito.
És muito novo, amigo, para seres já um assassino! disse Esteban, mas, aparentemente, a coragem não espera pelo número dos anos. E agora, que vamos fazer de ti?
Por favor, messire, segurai-o e emprestai-me o punhal, que eu ajusto contas com ele disse Battista, que aparecera em camisa, coberto de lama e esfregando a cabeça, onde se via uma enorme protuberância. Esse bruto atacou-me, despojou-me da minha roupa e do meu tabuleiro e, se percebi bem, também pôs os guardas fora de acção?
É verdade. Mas é melhor irdes buscar socorro... Eu seguro-o ainda por mais algum tempo. É fácil.
Deveis ter razão. Não podemos abafar isto, sobretudo quando estão em causa os soldados de monsenhor... e a sua refém preferida. O duque disse que responderíamos todos com as nossas vidas pela segurança de donna Fiora...
E Battista, envolvendo-se no cobertor que Fiora lhe estendeu, saiu a correr gritando ”Oh da guarda!” Entretanto, a jovem, que ainda não se acalmara, acocorou-se junto de Esteban, que continuava a segurar Virgínio apontando-lhe um punhal à garganta e olhou, não sem espanto, para a cota de armas verde com a cruz branca de Santo André apertada por um cinturão sobre uma cota de malha, a longa espada suspensa do lado esquerdo e o morrião de ferro que rolara por terra quando ele se atirara sobre o pajem.
Esteban! suspirou ela. Mas, é um milagre! Agora sois borgonhês?
Só há pouco tempo, donna Fiora! disse ele com um sorriso tão tranquilo como se se tivessem separado na véspera. Mas não deixo, por isso, de ser um bom soldado acrescentou ele com uma piscadela de olho que aconselhava prudência. Estais bem depois do nosso último encontro? Foi... em Avinhão, suponho? Quanto a mim, quando estava a fazer uma ronda, vi este cretino a atacar um pajem, a roubar-lhe as roupas e o tabuleiro, vestir umas e pegar no outro, e segui-o para ver o que tencionava fazer. E vi... mas, que grande sorte encontrar-vos! Se eu soubesse que estáveis aqui, neste acampamento!...
Fiora compreendeu aquela algaraviada insistente: mesmo fora de combate, Virgínio continuava a ser perigoso, porque tinha, infelizmente, uma língua viperina e sabia servir-se dela.
Ambos conversaram, assim, superficialmente e de uma forma perfeitamente irrealista, até que Battista regressou, ainda todo sujo. Mas, desta vez, acompanhava-o La Marche em pessoa com alguns dos seus guardas. O rapaz foi posto de pé com alguma brutalidade, ao mesmo tempo que o castelhano sacudia os joelhos. O capitão da guarda estava visivelmente furioso:
Soldados adormecidos e um pajem atacado! Que significa isto? E quem és tu?
Virgínio Fulgosi, sire capitão. Estou ligado à pessoa de monsenhor o conde de Campobasso disse o jovem prisioneiro, que visivelmente, recuperara a compostura. Foi por sua ordem que vim aqui... Esta... esta mulher fez chegar um bilhete ao meu senhor suplicando-lhe que a ajudasse a evadir-se...
Curiosa maneira de ajudar a fugir alguém, atacando-a com isto! - exclamou Fiora indignada, brandindo a adaga manchada de sangue e mostrando o ferimento que recebera na mão ao defender-se. Este miserável tentou matar-me e sem este homem corajoso acrescentou ela apontando para Esteban, que voltara a pôr na cabeça o morrião e assumira um ar modesto a esta hora estaria morta. Interrogai-o: ele dir-vos-á o que se passou... Em seguida, podereis sempre perguntar a Campobasso que ordens deu a este rapaz...
Ela mente! berrou Virgínio, que se torcia como uma cobra, preso pelos soldados. Ela e este homem conhecem-se. Ele é um antigo amante dela!
A bofetada que o castelhano lhe assentou era capaz de atirar um boi ao chão, mas a sua voz era de indignação virtuosa quando proclamou:
Certamente que conheço donna Fiora e há muito tempo! Ela era deste tamanho quando a vi pela primeira vez em Florença, em casa do seu nobre pai. E também conheço donna Léonarde, a sua governanta piedosa, e monsenhor o príncipe Lascaris, seu tio-avô... e gostaria de saber o que faz ela no meio de todos estes homens de armas e à mercê do primeiro cobarde que aparece!
Tudo bem, amigo! Veremos o que diz monsenhor o duque disto tudo. Tu vens comigo para lhe contar o que aconteceu. Depois, mando chamar messire Campobasso... Donna Fiora, peço-vos desculpa por tudo. Vou mandar-vos mestre Matteo de Clerici, o médico de monsenhor, para vos tratar esse ferimento.
Isto não é nada, messire Olivier. Não é profundo e eu mesma faço o tratamento. Mas agradeço-vos pela vossa cortesia e recomendo-vos este bravo homem, que só pode ser um excelente recruta para o exército do senhor duque: é forte e valente.
A jovem só tinha um desejo: ficar só, porque era impossível falar com Esteban, mas o facto de saber que ele estava perto dela, protegendo-a, era extremamente reconfortante. O que não impedia que ardesse de curiosidade. Como conseguira o castelhano alistar-se no exército borgonhês? Ele dissera que acontecera recentemente: mas que fizera durante aqueles dois meses?... Incapaz de encontrar uma resposta, a jovem comeu um pouco de carne fria, uma ou duas colheres de compota e deitou-se na cama, cobrindo-se com o seu manto para substituir o cobertor que dera a Battista. Pela primeira vez, depois de muitas noites, o seu sono foi tranquilo, confiante, tão pouca coisa necessita um ser jovem para se sentir em segurança. Para que Esteban tivesse chegado no momento oportuno para a salvar de uma morte certa, era porque uma providência velava por ela. Mas essa ajuda a jovem não a atribuía a Deus. Não porque não acreditasse nunca deixara de acreditar mas porque o Todo-Poderoso não parecia preocupar-se com os humanos senão para os encher de sofrimentos e privações. Não, se alguém velava por ela só podia ser a alma dolorosa de um homem que lhe consagrara a sua vida, aquele Francesco Beltrami a quem ela nunca deixaria de chamar pai.
Quando regressou, no dia seguinte, Battista trazia um cabaz de más notícias: primeiro, Philippe de Selongey fora ferido ao de leve, apesar de tudo no decurso de uma saída tentada pelos assediados para permitir a entrada de uma caravana de víveres pela porta da Craffe. Depois, o pajem Virgínio, que Campobasso, louco de raiva, tinha mandado executar, fora salvo pela intervenção do próprio Temerário. Segundo o duque, talvez ele não tivesse mentido e talvez tivesse havido uma tentativa de evasão. O rapaz fora entregue ao preboste do exército, ficando à espera que o assunto se esclarecesse. Por fim, a chuva diluviana provocara um desabamento de terras, que engolira uma companhia inteira. O exército, exasperado com aquele tempo abominável, estava a pontos da rebelião e, segundo o pajem, o bispo de Metz, Georges de Bade, que queria, pelo menos, ver o seu irmão, o margrave, tornar-se governador da Lorena, não cessava de percorrer o acampamento para exortar os homens à paciência, afirmando que os víveres abundavam, esses víveres que escasseavam cruelmente na cidade bloqueada...
Mas, enfim disse Fiora o famoso duque Renato, onde está ele? Não vem em socorro da sua famosa capital?
Creio que ele bem gostaria, mas não pode. Está em França, tentando conseguir socorro e tropas do Rei Luís, mas este, se bem compreendi, não quer quebrar os acordos assinados em Soleuvre...
O lugar de um chefe é à cabeça das suas tropas, sobretudo quando o combate é desesperado. Quanto a vós, os Borgonheses, não percebo por que se queixam: só têm que esperar tranquilamente que a cidade morra de fome. É assim tão difícil?
Talvez não, mas já é o segundo Inverno que eles vêem aproximar-se diante de portas que recusam abrir-se. Ainda não digeriram Neuss e Nancy não lhes inspira nenhuma confiança. É preciso compreender!
A última má notícia surgiu na pessoa do capitão da guarda: o duque Carlos ordenava que lhe levassem a sua prisioneira. Sem uma palavra, Fiora pegou na sua capa, puxou o capuz para a cabeça e seguiu o oficial através das rajadas de chuva, sob a qual o acampamento começava a dissolver-se...