Fiora queria fechar os olhos, não ver nada, mas era-lhe impossíveclass="underline" tinha que olhar... Por vezes o seu olhar deslizava, cheio de apreensão, para o rosto imóvel do Temerário, no qual apenas os olhos pareciam estar vivos. Esses olhos brilhavam, seguindo as fases da luta que, para a sua alma guerreira, devia ser um espectáculo de eleição, e um rancor amargo apoderou-se de Fiora. Como pudera ser tão estúpida, pedindo-lhe que impedisse um duelo que lhe dava tanto prazer e que apreciava como conhecedor? A emoção daquela mulher transtornada devia diverti-lo, assim como a ansiedade que adivinhava no seu rosto... De qualquer maneira, e fosse qual fosse o resultado do combate, Fiora perdera toda a esperança no futuro. A sua vida estava definitivamente devastada, porque nunca aceitaria ser o preço de uma vitória do condottiere sobre o homem que amava e, se Philippe ganhasse, rejeitá-la-ia para sempre.
Que ele viva, meu Deus! implorou ela, reencontrando subitamente, naquele instante de perigo extremo, o recurso desesperado à oração que ele viva, e eu libertá-lo-ei. Pedirei a anulação deste casamento insensato!...
A jovem tinha frio até na alma. A neve que cobria o recinto e que, sob os passos dos duelistas, se transformara em lama, gelava-lhe os pés e fazia-a tremer. Era como se todo aquele frio se insinuasse nas suas veias e lhe chegasse ao coração...
A respiração dos dois homens era cada vez mais curta e ruidosa. O combate durava, durava e, de tanto ferir, as pesadas espadas deviam pesar dez vezes mais sob os músculos fatigados. Os golpes pareciam menos violentos e nenhum ferimento aparecia em qualquer dos contendores. Fiora recobrou a esperança. Iria o duque parar aquela luta por demasiado igual? Subitamente, ao querer evitar um ataque do seu adversário, Philippe recuou, escorregou e caiu pesadamente de costas. Campobasso já se precipitava sobre ele, a espada pronta para lhe abrir a cabeça, quando a jovem, com um grito de terror, se atirou para o meio dos dois homens empurrando Campobasso, cuja espada se abateu sobre o seu ombro, ao mesmo tempo que o braço vestido de ferro lhe atingiu a cabeça. A jovem sentiu uma dor lancinante e desmaiou, levando consigo para as profundezas apaziguantes da inconsciência o eco dos clamores que se elevavam em seu redor; deixou de ter qualquer conhecimento daquele mundo impiedoso de homens, contra a crueldade do qual acabava de se ferir voluntariamente...
Ao recobrar a consciência, reencontrou a dor. O seu ombro, que umas mãos suaves ligavam lentamente, fazia-a sofrer terrivelmente, como se lho fossem arrancar. A cabeça também lhe doía e os sons ressoavam dentro dela como os sons de um sino... A jovem abriu penosamente os olhos e viu que a tinham levado para o seu quarto do palácio, enquanto um homem, no qual reconheceu Matteio de Clerici, o médico ducal, se inclinava sobre ela e lhe prestava cuidados:
Nenhum osso parece quebrado comentou ele em italiano. A espessura do manto e do vestido amorteceram o golpe, desferido, aliás, com uma arma cuja lâmina estava embotada, mas foi um verdadeiro milagre o ombro não ter sido arrancado... Ah! parece que regressa a si!
Tendes a certeza que a sua vida não corre perigo? perguntou a voz do duque Carlos e Fiora, a despeito das brumas que lhe obscureciam o cérebro, descobriu que ele falava o italiano com facilidade. A menos que haja complicações, certamente que não. Esfreguei o ferimento com uma pomada que o ajudará a cicatrizar e lhe deve apaziguar a dor. Quanto ao golpe recebido na cabeça, é pouca coisa: um galo que já está um pouco azul...
Philippe sussurrou Fiora... Philippe está vivo?
A poderosa silhueta negra do Temerário emergiu da sombra e apareceu à claridade das velas acesas na cabeceira da cama:
São e salvo... assim como o seu adversário, aliás. Mas que gesto louco! Acreditais, sinceramente, que eu teria deixado Campobasso degolar Selongey? A expressão do rosto de Fiora indicava, claramente, que tinha dúvidas e murmurou:
O combate não foi até à morte?
Eu tenho sempre o direito de parar um duelo quando muito bem me parece. Sabia que, tanto um, como o outro, teria muita dificuldade em derrotar o seu inimigo e esperava que a fadiga acabasse por vencer. Confesso que, entretanto, teria preferido que tivessem mantido os elmos nas respectivas cabeças...
Não... podíeis... ter ordenado que... os voltassem a pôr?
Não, isso não. Cada um tem o direito de combater como lhe convém...
Monsenhor! censurou-o o médico a minha paciente perdeu muito sangue e precisa de repouso. Vou-lhe dar uma poção que a fará dormir e veremos, amanhã, como está o ferimento...
Só mais um momento, por favor disse Fiora Queria pedir-vos... monsenhor... que falásseis por mim a Sua Eminência, o núncio. Eu... eu quero pedir a anulação... do meu casamento...
Quereis?
Sim... e quanto mais cedo melhor. Dizei a messire de Selongey... que está livre de qualquer compromisso... para comigo. Assim como... vós próprio. O meu pai... sabia que esse ouro vos estava destinado... Não contestarei uma doação... que ele fez livremente!
Esgotada pelo esforço que acabava de impor a si própria, a jovem fechou os olhos e não viu o duque inclinar-se sobre si, mas sentiu o calor da sua mão quente, que ele prendeu na sua.
Não tenhais pressa, suplico-vos! Neste momento não estais em vós...
Porque perdi... toda a minha agressividade? perguntou a jovem com um sorriso pálido.
Talvez. Voltaremos a falar de tudo isto quando estiverdes restabelecida. Devo dizer-vos que Selongey está ali fora. Dais licença que ele entre?
Não... não! Nem ele... nem o outro! Por piedade!
Vós tendes direito a muito mais do que piedade, mas seja como desejais. Repousai!
Já não é sem tempo disse asperamente o médico. Mas, seria conveniente encontrar uma mulher para velar por donna Fiora. Para além das raparigas da cozinha, este palácio está cheio de homens, sem contar com as duas mil prostitutas que seguem o nosso exército. Os cuidados de uma mulher de bem seriam...
Desejáveis? Partilho da vossa opinião e vou tratar disso logo de manhã. Entretanto, continuai com os vossos cuidados...
Após a sua partida, Matteo de Clerici fez a paciente absorver uma tisana que ele acabava de preparar na lareira da chaminé, na qual deitou umas gotas de um frasco que trouxera consigo.
A droga devia ser eficaz, porque, mal bebeu o último gole, Fiora adormeceu profundamente...
Por trás da porta do quarto, o duque reencontrara Philippe, que media nervosamente as lajes do chão: era visível que tinha chorado:
Como está ela? interrogou-o ele. Posso vê-la?
Ela está livre de perigo, mas tu não podes entrar, Philippe.
Porquê?
Porque ela não quer.
Está à espera do outro? exclamou o jovem, furioso. Ele não está longe: Olivier de La Marche está ao fundo da escada com ele...
Ela não quer ver nenhum dos dois... e pediu-me expressamente que solicite ao núncio a anulação do vosso casamento. Encarregou-me de te dizer que estás livre de qualquer compromisso para com ela. Foram estas as suas palavras e eu creio que ela tem razão.
Monsenhor! protestou Selongey. E eu, não tenho o direito de falar? Parece-me que também me diz respeito?
Baixa o tom, por favor! Estás a falar com o duque da Borgonha. Com o duque da Borgonha, que tem o direito de te pedir contas da tua conduta: primeiro casaste-te sem a minha autorização e depois usaste a chantagem para conseguir a mão de uma infeliz nascida na vergonha e que o mais miserável dos meus súbditos teria recusado como esposa. Merecias que te obrigasse a devolver o Tosão de Ouro. E agora, proíbo-te de tentar vê-la, ou sequer de te aproximares. Contenta-te em saber que ela te salvou a vida e vai-te! Esquece-a!
Se pensais que isso é fácil! exclamou Selomgey com amargura. Há meses que o tento, pensando que estivesse morta. E depois, vi-a e senti...