Por sua parte, Fiora, esquecendo que aquele comércio fazia concorrência à cidade da sua infância, gostava da loja de mestre Guin de Bordes, que passava por fornecer os mais belos tafetás, sobretudo aquela seda espessa a que começavam a chamar o ”gros”NI de Tours. A loja, com as suas madeiras escuras admiravelmente enceradas e os armários a abarrotar de maravilhas, agradava-lhe pela sua elegância e Fiora encontrava nela a boa companhia e a cortesia que lhe lembravam as lojas de outros tempos.
Queria um vestido novo, como acontece muitas vezes quando se vive durante muitos meses com a cintura deformada, comprou alguns de tafetá de um belo vermelho-coral e depois escolheu um tecido de veludo cor de ameixa para Léonarde e um belo pano de um azul quente que destinava a Péronnelle. Florent carregou tudo na sua mula e dirigiram-se para Carroi-aux-Herbes, perto do castelo, que dominava a imensa ponte sobre o Loire e as suas ilhas até ao bairro de Saint-Symphorien. Havia lá um certo albergue, célebre pelos seus patês de lúcio e Fiora, como lhe acontecia frequentemente desde que estava grávida, morria de fome. Instalaram-se, portanto, sob uma ramada contígua ao albergue para ali restaurar as forças da futura mãe.
O local era encantador, um pouco afastado da rua que, no prolongamento da ponte de vinte e cinco arcos, estava sempre muito animada. Através da parra já moribunda das vinhas apercebiam-se as pimenteiras azuis, os cata-ventos do castelo e a
Símbolo dos tecidos de Tours, como a renda de Bruxelas
flechá da capela onde Luís XI tinha casado com Carlota de Sabóia e onde os seus pais, Carlos VII e Maria de Anjou, tinham feito o mesmo. Esses acontecimentos não tinham sido suficientes para ligar o Rei àquela fortaleza elegante, tendo preferido Plessis.
Depois de terem provado o patê, regado com um excelente vinho de Vouvray, os três companheiros concederam a si próprios um momento de descontracção mastigando umas ameixas de conserva. A verdura onde estavam abrigados protegia-os do sol que aquecia os telhados das casas e iluminava o Carroi, mas o seu calor era normal para a época, não era a canícula que tinham tido de sofrer. Fiora e Léonarde sentiam-se fundir numa sensação de bem-estar que, geralmente, prenuncia o sono.
Não seria melhor regressarmos? perguntou esta. Não é propriamente um local onde devamos fazer uma sesta.
Está-se aqui tão bem! replicou Fiora. Só mais um bocadinho.
Nem por todo o ouro do mundo seria capaz de dizer porque lhe apetecia demorar-se ali. Talvez por causa daquela profunda paz, total, que a banhava, uma paz tanto mais preciosa quando se adivinha obscuramente que não vai durar, que se vai passar qualquer coisa e que o combate vai recomeçar. Evidentemente, não imaginava que esse combate pudesse ser outro que não o parto próximo e no entanto...
A quietude em que a cidade inteira parecia estar mergulhada voou subitamente em estilhaços. Ouviram-se gritos que ninguém compreendeu, sons diversos e o pisar de centenas de pés que corriam sobre o pavimento da rua. O estalajadeiro apareceu à porta para perguntar o que se passava e viu que toda aquela gente corria para a ponte. Alguém berrou:
Um prisioneiro! Trazem um prisioneiro numa jaula! Na ponte!
Fiora pôs-se imediatamente de pé, movida por uma força interior que não podia controlar.
Vamos ver!
Sois louca? protestou Léonarde. Para que ides contemplar um desgraçado?
. Não sei, mas tenho de ir. Para o terem metido numa jaula
é porque deve ser um prisioneiro importante.
É insensato! Isso não é bom para vós nem para a criança.
Ajudai-me, vós! acrescentou ela na direcção de Florent, que também se levantara e olhava para a jovem com inquietação.
Mas este abanou a cabeça sem responder. Conhecia suficientemente bem Fiora para saber que quando ela franzia a testa e cerrava os dentes, era impossível fazê-la desistir de uma decisão. Desta vez, a jovem contentou-se em virar o olhar para o seu jardineiro.
Vinde comigo, Florent! disse ela. Deveis ser suficiente para me proteger da multidão. A dama Léonarde espera-nos aqui!
Não faltava mais nada! protestou esta. Começo a estar farta de vos repetir que onde fordes, também eu vou. No entanto, exijo que levemos as mulas. Ir a pé seria uma loucura. Mas continuo a dizer que um tal espectáculo não foi feito para uma jovem perto do fim... aliás, para mulher nenhuma!
Um instante mais tarde, empoleirada na sua mula guiada por Florent o jovem achara mais prudente deixar a sua no albergue com as compras Fiora avançava com dificuldade no meio da multidão que se formara aos primeiros gritos e se amontoava para transpor a porta de Saint-Genest, que dava directamente para a ponte. A corrente passava lentamente, porque naquele local o Carroi-aux-Herbes, separado do castelo por um profundo fosso alimentado pelo Loire, estreitava. Em breve não correria de todo. Desencorajado, Florent virou-se para Fiora, que dava ares de impaciência.
Faríamos bem se esperássemos aqui! O prisioneiro não vai ficar na ponte. Vai, certamente, entrar na cidade. Vê-lo-emos ao passar.
Antes que a jovem pudesse ter respondido, o jardineiro interpelou um dos soldados que guardavam a ponte levadiça do castelo.
Sabeis para onde conduzem o homem que está a chegar?
Para o castelo de Loches, talvez... a menos que seja para Plessis... ou então para casa de um notável qualquer!
Para casa de um notável? Para quê?
Ora, para que o guarde! É um sinal particular da benevolência do nosso sire, confiar um prisioneiro a alguém que ele estima respondeu o homem, divertido com a cara pasmada do jovem, que, aliás, não se deu por satisfeito e parecia querer ir ao fundo da questão:
Será preciso que ele tenha uma grande porta, o vosso notável, para meter por ela uma jaula com o respectivo ocupante!
É mais simples do que isso explicou o outro, imperturbável atira-se abaixo um bocado de parede e reconstrói-se depois. Avisam-se os pedreiros com antecedência. Queríeis atravessar a ponte? acrescentou ele lançando um olhar de admiração para Fiora. A jovem dama mora, talvez, em Saint-Symphorien?
Não! Só queríamos ver o cortejo. Moramos em Plessis acrescentou ele com ar negligente.
Nesse caso, ficai perto de mim. Não o perdeis de certeza. Por falar nisso, lá vem a multidão.
Galantemente, depois de, com uma piscadela, ter avisado a outra sentinela, o homem levou as duas mulas para a ponte levadiça do castelo, o que assegurou às duas mulheres um local óptimo, ao abrigo da confusão. Era tempo. Todos aqueles que não tinham podido transpor a porta cuja alta ogiva se destacava no céu fulgurante, foram empurrados para trás por uma força contra a qual nada podiam, ao mesmo tempo que aqueles que estavam na ponte não podiam recuar, já que o cortejo do prisioneiro lhes cortava a retirada. Alguns terão, sem dúvida, caído à água, porque se ouviram uns gritos e uns ”plof” estrondosos. Fiora sentiu apertar-se-lhe o coração, esperando perdidamente que aquele prisioneiro especial não fosse o seu marido. Esse temor tinha a ver com certas palavras que chegavam até ela: