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E que fizestes vós? perguntou Léonarde enquanto deitava uma colher de mel na sua filhó.

Disse-lhe que não comia daquele pão e que faria melhor em seguir o seu caminho. O que ele fez, aliás, encolhendo os ombros, mas com um sorriso de que não gostei nada. Virou-se várias vezes para olhar para a nossa casa. Talvez me engane, mas fiquei com má impressão dele.

Péronnelle, em cuja alma dormia um cão de guarda, declarou, então, que também não gostava nada daquela história e que ia mandar Étienne a Plessis para falar com messreetienne Lê Loup, criado grave do Rei, que velava pelo castelo na sua ausência, para o advertir do incidente. Não que temesse que um estrangeiro solitário pudesse causar algum dano no domínio real sempre poderosamente guardado, mas para que Lê Loup consentisse em estender a vigilância à casa das pervincas.

Léonarde admitiu que era boa ideia e pediu que a vigilância fosse suficientemente discreta para não inquietar Fiora, já que esta recebera, no espaço de dois dias, mais do que a sua conta de dor e angústia.

Talvez estejamos a fazer do buraco de uma toupeira uma montanha concluiu ela. Pode ser que esse estrangeiro não passe de um curioso.

Por trás de um curioso pode esconder-se um espião afirmou Florent, que não desarmava. Ou pior ainda: um apaixonado!

Por que razão seria pior um apaixonado do que um espião?

. perguntou Léonarde sem conseguir conter o riso.

. Eu sei o que digo. Eu sei muito bem que são muitos os homens que admiram dona Fiora e que os haverá sempre, mas não gostaria que tivesse de fazer frente ao amor de uma personagem como aquela. Não vistes os seus olhos? São frios e cruéis. Aliás, não acredito que seja mercador. Cheira a guerra a quinze passos.

Léonarde, desta vez, não disse nada. A recordação que guardava do estrangeiro dizia-lhe que Florent, talvez inspirado pelo seu amor sem cessar acordado, podia muito bem ter razão. Ainda por cima porque o desconhecido vinha de Itália e Léonarde sabia, por experiência própria, que as gentes de baixa condição floresciam ali mais facilmente do que no reino de França, onde o rude punho do Rei Luís e a polícia do grande preboste Tristan L’Hermite faziam reinar nos vagabundos um temor saudável. De qualquer maneira, não fazia mal a ninguém que a casa fosse mais bem guardada. Pelo menos até ao regresso do Rei, que não devia tardar.

Assim, os dias correram sem que voltassem a ver a inquietante personagem.

CAPÍTULO IV

O ATENTADO

Contrariamente ao que temiam os seus companheiros, Fiora recompôs-se rapidamente do parto. Cinco dias depois já estava de pé e parecia ter recobrado a saúde, mas não tinha leite para dar ao pequeno Philippe. Foi preciso recorrer, sem demoras, à ama cujos serviços Léonarde e Péronnelle tinham assegurado adiantadamente, prevendo aquele género de incidente que por vezes ocorria. Era uma rapariga forte da aldeia vizinha de Savonnières, que, deixando o seu último rebento aos cuidados da sua mãe e do rebanho de cabras familiar, se foi instalar no solar com evidente satisfação. De resto, foi uma aquisição bastante agradável, porque estava sempre de bom humor, era plácida e silenciosa, adorava visivelmente as crianças e ligou-se instantaneamente à que lhe confiaram. A cama fofa e a comida copiosa de Péronnelle fizeram o resto e Marceline era o seu nome passou a fazer parte dos habitantes da Casa das Pervincas com a intenção, bem assente, de ficar nela o mais tempo possível. Entendeu-se rapidamente com a gente da casa e, se Fiora a impressionou, pareceu-lhe a coisa mais natural do mundo, já que era a castelã. Não imaginou, nem por um só instante, que se desenrolava um drama diante dos seus olhos.

Fiora, com efeito, já não era a mesma e aqueles que viviam a seu lado mal a reconheciam quando ela aparecia, uma silhueta negra, alta e magra, que os véus do luto faziam fantasmagórica. Já não ria, mal falava e passava longas horas sentada no banco de uma janela a ver passar o Loire na ponta do seu pequeno domínio sem tocar nos bordados que a tinham distraído durante a gravidez, as suas longas mãos ociosas abandonadas no tecido negro do seu vestido. Aparentemente, não tinha lágrimas e nem uma única vez pronunciou o nome do marido. Pior ainda, quando Léonarde tentou aproximar-se com palavras apaziguadoras, ela cortou-a rapidamente.

Não! Por piedade, não me digais nada! Não me faleis dele nunca mais. Philippe está morto e longe de mim... e a culpa é toda minha!

Então, a jovem abandonou a sala como se fugisse e desceu ao jardim para se ir sentar sob um pequeno berço de rosas musgosas, obra-prima de Florent. Este não andava longe, aliás, ocupado a limpar um maciço de goivos que os gatos tinham danificado numa noite de lua cheia. O seu primeiro movimento foi de ir ter com a jovem, mas apercebeu-se do seu rosto imóvel, do seu olhar sem vida e não ousou, temendo uma resposta que o ferisse. A sua bela dama parecia ter perdido a alma.

Em certo sentido era verdade. Fiora ligava o seu desespero e a sua mágoa àquele instante demente, insensato, em que se arrancara aos braços de Philippe para se afastar dele, decepcionada e ferida no seu orgulho. No entanto, esperara-as tanto, procurara-as tanto, aquelas horas de felicidade que acabava de interromper. E tudo porque Philippe, em vez de se consagrar a ela, pretendia continuar a levar a sua vida habitual, dedicado por inteiro ao serviço do suserano, depois de a ter relegado para o seu castelo borgonhês. No momento, a ideia parecera-lhe absurda e quando ele pronunciara a palavra obediência, todo o seu ser se revoltara. A vida que ele lhe oferecia, não a queria. Não lhe cabia a ele, que lhe provocara tanto mal, provar, enfim, que a amava mais do que tudo no mundo e tentar fazê-la feliz? Sim, pensava ela e pensara-o durante cada um dos momentos que se tinham seguido até àquele minuto terrível em que Mathieu de Frame lhe contara o que acontecera em Dijon, num dia daquele mês de Julho em que, na doçura daquele mesmo jardim, ela se abandonava à felicidade de transportar o ”seu” filho, acariciando a esperança de o ver, um dia, regressar.

Os pensamentos torturantes continuaram a sua ronda. Se ela tivesse aceitado deixar-se conduzir a Selongey, viver a existência que ele lhe oferecia, teriam as coisas sido diferentes? Teria ele ficado com ela? A razão murmurava-lhe que não, que tudo se teria desenrolado na vida de Philippe como ele tinha decidido, que teria continuado aquela luta insensata por uma Borgonha independente que não passava de um logro e que não teria evitado o cadafalso.

O cadafalso! Que maldição arrastava ele, aquele velho montão de pedras e madeira, que, após beber o sangue dos seus pais, bebera o do homem que ela amava? Tudo o que fazia parte da sua vida ia, obrigatoriamente, acabar naquele local de justiça? Talvez, se tivesse mantido os braços com força em redor de Philippe, tivesse conseguido mantê-lo junto de si, impedindo-o de ir para aquele destino atroz e inútil!

Por mais afastada que a Casa das Pervincas estivesse dos barulhos do mundo, algumas notícias chegavam de tempos a tempos, notícias essas que Péronnelle trazia do mercado, ou que Florent apanhava na cidade. Assim, souberam que no dia 18 de Agosto, em Gand, Maria de Borgonha casara com Maximiliano. Seria, um dia, Imperatriz da Alemanha e já não precisava da Borgonha que a conduta perigosa do defunto duque, aliás, afastara de si. Philippe morrera por nada, por nada, nem sequer por uma ideia. Não se luta contra a História, mas ele não quisera saber: o que ele quisera fora conservar para a ”sua” princesa a herança ancestral e Fiora, agora, já não sabia muito bem o que odiava mais, se aquela Maria que levara Philippe à perdição ou o governador de Dijon como se chamava ele? O senhor de Craon? que assinara a ordem da execução.

Os únicos instantes em que o turbilhão dos seus pensamentos lhe dava algum descanso, Fiora passava-os junto do filho. O bebé era soberbo. O leite de Marceline parecia convir-lhe às mil maravilhas e o bebé prometia ser grande, forte e talvez feliz na vida: se palrava muito, chorava pouco e às vezes nem isso, porque quando ficava colérico, os seus olhos, ainda quase sem tonalidade, permaneciam secos. Diante dele, Fiora era toda adoração e quando o tinha nos braços e acariciava com a ponta do dedo a ligeira penugem castanha da sua pequena cabeça, envolvia-a uma tal vaga de amor que esquecia, por um momento, o sofrimento. Então, demorava-se junto do berço, uma barca frágil à qual, como se estivesse em vias de se afogar, se agarrava para não enlouquecer. Quando se afastava, os pensamentos amargos regressavam.