Num piscar de olhos, Fiora, persuadida de que a sua hora acabava de soar, viu-se atada como uma peça de caça e atravessada em cima do seu cavalo, para o qual o chefe se içou com satisfação.
Tu és um pouco impulsivo, amigo disse ele, assentando uma palmada jovial nas nádegas do pretenso mensageiro mas és boa pessoa. A tua bolsa merece consideração. Pelo contrário... vai ser preciso que me leias isto acrescentou ele virando o bilhete de Catarina nos dedos. Eu nunca tive tempo para aprender a ler!
Se dás valor à tua cabeça, capitão, aconselho-te a deixares essa carta em paz grunhiu Fiora cujo nariz, a cada passo do cavalo, roçava no couro dos arreios. Aliás, só o facto de me impedires de prosseguir o meu caminho já faz com que ela abane um pouco.
Era preciso audácia. Extraordinariamente, aquele bandido parecia mais ávido do que cruel. Talvez fosse possível entender-se com ele? Restava saber para que lado penderiam as suas simpatias políticas...
Raramente encontrei cadáveres palradores, sabes? disse o outro. Mas fica tranquilo! Não vamos longe e vais poder repousar um pouco. Simplesmente, se te armas em mau, pode ser que esse repouso seja eterno...
Por uma vereda que serpenteava através de um bosque de sobreiros, o bando atingiu em breve a entrada de uma caverna que se abria no flanco de uma colina, com uma entrada estreita e disfarçada por uma espessa vegetação.
A noite caía. Em fila indiana, percorreram um corredor escuro, invadido por um odor de fumo que irritou os olhos de Fiora e a fez tossir, mas que alargou e se iluminou logo a seguir, ao mesmo tempo que um agradável odor a carne grelhada chegava às suas narinas. Pousaram-na no chão e ela viu-se, um pouco entorpecida, junto de uma fogueira, por cima da qual assava um cordeiro inteiro. Junto dela, o chefe aquecia as mãos ao calor do fogo.
Recordo-te o que te disse disse ela calmamente. Quanto mais tempo passa, mais a tua cabeça fica em perigo.
Chega! grunhiu o homem, lançando-lhe um olhar assassino. Há coisas que eu não gosto de ouvir, nem que seja só uma vez. Se forem duas, então...! Estou com vontade de te calar para sempre.
Não te incomodes! exclamou Fiora cuja cólera aumentava na proporção do tempo que perdia. Mas pensa que o meu cadáver pode ser ainda mais perigoso do que a minha pessoa. Tu não sabes ler, mas se és, como penso, um antigo soldado, devias conhecer este brasão?
Hum!... A víbora milanesa, sim... conheço! Mas essa rosa, o que é?
Há muito tempo que não deves sair do teu buraco. Se queres saber mais, afastemo-nos um pouco. Talvez não tenhas segredos para os teus homens, mas eu tenho coisas que não posso dizer a toda a gente.
Vagamente lisonjeado, o chefe debruçou-se, desatou as pernas de Fiora e depois, segurando na ponta da corda que lhe atava as mãos, levou-a para o fundo da gruta. Ali, um monte de palha e alguns cobertores formavam uma enxerga, na qual ele se deixou cair.
Anda lá! Fala!... Quem é o teu patrão?
Não é um patrão, é uma patroa: a sobrinha do Papa, Dona Catarina Sforza, condessa Riario. Enviou-me a Florença em missão... especial, daí essa carta. Se não chegar lá, arrisco a minha cabeça, mas quem me impedir, ainda arrisca mais. Dona Catarina não é muito indulgente, apesar da idade.
O bandido tirou o gorro para coçar a cabeça, visivelmente preocupado com um problema difíciclass="underline"
Já ouvi falar! Dizem que ela é tão brava quanto bonita e tem a quem sair! Eu, que estou aqui a falar contigo, servi sob as ordens do avô dela, o grande Francesco Sforza, um rude homem de guerra, esse! Ainda era miúdo, mas posso dizer-te que vivi bons tempos com ele. Aí está um que sabia como agradar aos seus soldados...
Subitamente, os olhos do bandido brilharam com um fogo mais vivo, ao mesmo tempo que a sua voz se enchia de uma espécie de nostalgia:
Pilhámos Piacenza juntos e tu nunca hás-de ver semelhante saque, meu rapaz, nem nada que se pareça! Estripámos os homens, violámos as mulheres todas dos dez aos sessenta, escaqueirámos tudo e, para acabar, deitámos fogo a tudo. A cidade parecia um inferno a arder, enquanto atirávamos com as raparigas para os ribeiros que iam cheios de vinho, de sangue e de tripas. Fazia um calor de rachar, mas bebemos tudo o que nos apeteceu. E depois, no fim, ficámos ricos: prata, belos tecidos, víveres e ouro, foi o que Sforza deu aos seus homens! Também tivemos freiras... e até fradecos, para aqueles que gostam. Ah!... seria preciso ir até bem longe para encontrar um chefe como ele! Os de agora só pensam em vestir-se de seda e evitar os golpes. Têm a pele tenra... Sforza, esse, usava couro, o bom e velho couro esmaltado, como a minha couraça, mas, no entanto, a Rainha de Nápoles não se importou de o ter na cama dela e Milão deu-lhe a mais bela das princesas...
Fiora escutara, sem impaciência e sem se comover, o bandido a desfiar as suas recordações: já vira a guerra bem de perto para lhe conhecer os horrores.
Eu sou tão fiel a Dona Catarina como tu eras ao seu avô e posso assegurar-te que ela é digna dele. Escuta! Fica com a minha bolsa, mas deixa-me partir com o meu cavalo! Juro-te que, uma vez a missão cumprida, trago-to com mais dois, se quiseres...
Por que não vinte? Os que estarão debaixo dos rabos dos soldados que te acompanharão? Tomas-me por imbecil, miúdo? Eu já não acredito na palavra das pessoas e tão certo como eu chamar-me Rocco da Magione, ainda não nasceu aquele que me há-de ficar seja com o que for... Especialmente um maricas que nem sequer barba tem. Uma verdadeira rapariga palavra de honra acrescentou ele passando um dedo pela face de Fiora, que quase lho mordeu, mas a jovem decidiu jogar a sua cartada!
Mas, eu sou uma rapariga disse ela docemente. E Rocco retirou o dedo como se o tivesse queimado. O que é que estás a dizer? É fácil de verificar. Tira-me o gorro! O bandido tirou o gorro de feltro, revelando a rede que mantinha apertados os cabelos da jovem. Esta agitou a cabeça e um rio de seda negra caiu-lhe sobre os ombros sob o olhar estupefacto de Rocco. É verdade! Mas, quem és tu? Eu digo-te, mas, primeiro, responde-me. Já que vigias esta estrada, não viste passar a noite passada uns cavaleiros escoltando uma liteira?
A noite passada, não: esta madrugada. Uma caravana bem esquisita, acredita-me, e vontade não me faltou de pôr os meus homens todos a cavalo, mas eles vinham bem armados demais para os modestos bandidos que nós somos.
É pena! gemeu Fiora. Se os tivesses atacado, terias, sem dúvida, evitado uma grande infelicidade...
Mais devagar! A infelicidade teria sido minha e destes bravos rapazes que se puseram sob a minha bandeira. Mas, regressemos ao princípio: quem és tu?
O meu nome é Fiora Beltrami e sou amiga de Dona Catarina. Para completar o quadro, acrescento que sou, também, a inimiga jurada do rústico marido dela... Oh, chega! Estou aqui a fazer de imbecil, a discutir com um ladrão de estrada enquanto que, se calhar, amanhã, os Médicis vão morrer!
A jovem quis levantar-se, mas Rocco impediu-a e atirou com ela para a palha. Ao mesmo tempo, o homem lançara um verdadeiro rugido:
O que é que tu disseste? Que história é essa de mortes?
Demora um certo tempo a explicar. Basta que saibas que, se estou com pressa, é porque a condessa e eu queremos salvá-los. Os que viste passar ontem são os assassinos!
Seguiu-se um silêncio durante o qual Rocco tirou do cinto uma longa faca muito pouco tranquilizadora, mas o homem limitou-se a cortar a corda que ligava os punhos da prisioneira. Em seguida, reflectindo, deu uns passos de um lado para o outro.
Se eu te ajudar, achas que posso esperar uma boa recompensa? disse ele cofiando a barba.
Pela memória do meu pai, assassinado por aqueles Pazzi que viste passar, juro-te. Mas, por que razão farias algo pelos Médicis?