Recuai! berrou ele. Recuai todos ou carrego sobre vós! Se não obedeceis, é porque ainda há assassinos entre vós. Portanto, cuidado!
A multidão recuou, abrindo uma passagem pela qual Lourenço e os seus amigos avançaram, saudados por vivais frenéticos, aos quais o Magnífico respondeu com um gesto da mão. Mas, subitamente, o senhor de Florença parou:
Giuliano! exclamou ele. Que fizeram do meu irmão?
Está aqui, Monsenhor! disse Savaglio mostrando, com a espada, um grupo de homens que, naquele mesmo instante, erguia sobre os ombros uma padiola coberta por um pano de seda arrancado, sem dúvida, a uma janela da praça. Sob o tecido púrpura desenhava-se a forma do corpo.
Rapidamente, Lourenço aproximou-se deles e, com um gesto brusco, puxou o pano, que deslizou para o chão:
Quero que Florença veja, com os seus olhos, o que fizeram dele! Erguei-o! Erguei-o o mais alto que puderdes, para que a sua morte grite aos céus por vingança! E que seja feita justiça!
O cadáver apareceu, exangue no seu traje de festa, perfurado por trinta golpes de punhal, de tal modo os seus assassinos se tinham encarniçado sobre aquele que fora o feliz amante de Simonetta Vespucci, um pobre despojo sobre a mão pendente do qual Lourenço, de lágrimas nos olhos, pousou os lábios. Mas quando o triste cortejo se ia afastar, ele deteve-o uma vez mais:
Onde está o cardeal Riario? perguntou ele. Savaglio fez um gesto de ignorância, mas um miúdo, que vestia o traje dos cantores da igreja, saiu de detrás de um pilar e avançou:
Os cónegos do Duomo recolheram-no, ilustríssimo Senhor. Encontraram-no meio-morto de medo diante do altar e levaram-no para o reconfortar. Deve estar na sala do capítulo.
Que o vão buscar!
Que vais fazer? perguntou Politien, inclinando-se para o ombro do amigo. Por que não o abandonas ao seu destino? O povo engole-o...
É isso que quero evitar. A multidão é capaz de o retalhar e isso faria dele um mártir, que o Papa se apressaria a canonizar. E esse badameco é um refém demasiado valioso para o abandonar assim ao furor de uma populaça cega.
Mal ele acabou de falar, um grupo lamentável e vagamente grotesco emergiu do lado direito do coro. Era, amparado por dois cónegos gorduchos que rolavam os olhos assustados, o pequeno cardeal, que fazia uma aparição sem glória. O infeliz acreditava, sem dúvida, que chegara a sua última hora. Mas quando reconheceu o Magnífico à cabeça daquele grupo armado, fez um esforço visível para reencontrar um pouco de dignidade.
Sinto-me... sinto-me profundamente magoado... com este drama que ensanguentou o santo dia da Ressurreição e não quero... ficar aqui mais tempo! Quero partir... imediatamente!
Lourenço olhou para ele do alto da sua estatura com um olhar pleno de piedade:
Nem pensar. A presença da Tua Grandeza neste dia terrível mostrou a todos de onde veio o golpe que matou o meu irmão e que quase me matou a mim. Tu vais ficar aqui, na minha própria casa, até me apetecer.
Isso é violar o direito da Igreja! Eu sou núncio do Santo Padre e, como tal, não posso ser retido contra a minha vontade. Não ousarás, penso, erguer a mão para um príncipe da Igreja?
Eu? Nunca... No fim de contas, tu és livre, como dizes. Vai à tua vida! As portas estão abertas...
O jovem prelado olhou alternadamente para o rosto sarcástico de Médicis, para o corpo erguido pelas cariátides humanas, para as máscaras fixas dos guardas vestidos de ferro e, mais longe, para a multidão, a multidão que rugia e que, fora das paredes da igreja, já berrava a sua condenação: À morte os Pazzi! À morte os Riario! E até à morte o Papa!”
Apesar do calor, o badameco estremeceu sob o seu traje púrpura, baixou a cabeça e murmurou, vencido sem ter combatido:
Entrego-me nas tuas mãos, senhor Lourenço!
Sem acrescentar uma palavra, este fez-lhe sinal para o seguir, ao mesmo tempo que tomava o seu lugar à frente do cadáver e caminhava na direcção da saída. A multidão calou-se e abriu-se na sua frente. Sob o portal, quando o corpo de Giuliano apareceu, o Sol fez cintilar o ouro do seu traje e, mais uma vez, fez-se silêncio. Os sinos do campanário começaram a tocar a finados e o batimento fúnebre caiu sobre a cidade, que parecia reter a respiração.
Subitamente, de uma só vez e como se uma palavra de ordem misteriosa a tivesse percorrido, a multidão enfureceu-se: um monstruoso uivo subiu ao assalto do céu. Um clamor imenso, que parecia sair das entranhas da própria terra. O cortejo fúnebre foi erguido, arrastado por uma maré que, na sua fúria, transformou aquela hora de luto numa hora de triunfo, o morto num vencedor loucamente aclamado e o infeliz núncio, sempre apoiado pelos cónegos, num vencido, ao qual apenas faltavam as correntes e os ferros.
Vem! disse Demétrios para Fiora. Chegou a hora de repousares um pouco.
Para onde me levas? Para o palácio dos Médícis?
Não. Nem sequer nos poderíamos aproximar dele no estado em que as coisas estão. Aliás, Esteban está à minha espera com as nossas mulas naquela taberna de marinheiros de que ele tanto gosta, perto da Senhoria.
E o meu companheiro? Não posso abandoná-lo.
Partiu com Lourenço e os amigos dele. Depois de te levar para Fiesole, regressarei ao palácio e perguntarei por ele. Ao mesmo tempo, direi que regressaste.
Lourenço já sabe. Ele viu-me quando lhe dei a minha espada.
Mais uma razão para lhe falar esta noite. E agora, vamos!
Quando saíram da igreja, semicerrando os olhos por causa da luz cegante, a praça estava vazia, mas quando se dirigiram para a Senhoria, viram que nem toda a cidade seguira o cortejo dos Médicis, já que uma multidão numerosa se acotovelava na vizinhança do velho palácio.
Nunca poderemos passar gemeu Demétrios. No entanto, temos de o fazer se quisermos ir ter com Esteban.
Com efeito, um mar humano, um mar em fúria, uivante e excitado, percorria as poderosas paredes da Senhoria. Alguns tentavam, tolamente, escalar as pedras ciclópicas que constituíam a sua base, na esperança insensata de chegar às janelas lá no alto. Outros agarravam-se aos grandes pregos da porta chapeada a ferro, diante da qual os guardas dos priores, vestidos de verde, faziam os possíveis para os repelir. Todas as bocas se abriam em gritos ferozes e, empoleirado no Marzocco, o leão de pedra símbolo da república, um energúmeno desgrenhado lançava clamores selvagens enquanto agitava o seu gorro. Naturalmente, a Vacca tocava sobre toda aquela algazarra do alto da sua torre vertiginosa, no topo da qual flutuava o estandarte da flor-de-lis vermelha.
É extraordinário! disse Demétrios, que olhava sem compreender. Que faz esta gente aqui aos gritos?
O fim da sua pergunta perdeu-se sob um enorme clamor de alegria: a janela principal do palácio, a que dava para um balcão de ferro, acabava de se abrir e dois soldados, vestidos com túnicas verdes, apareceram, arrastando um homem amarrado que uivava de terror. A multidão calou-se, aguardando o que se seguiria. Foi rápido. Um dos homens de armas mergulhou uma adaga no peito da vítima e depois, enquanto retirava a arma, o seu companheiro agarrou no corpo dobrado, ergueu-o acima da cabeça num esforço hercúleo e atirou-o para a praça, onde ele se esmagou. A multidão afastou-se com uma espécie de suspiro de voluptuosidade...
No balcão, a cena renovou-se e um outro corpo apunhalado foi atirado à multidão, ao mesmo tempo que, entre as seteiras, o estandarte de Cesare Petrucci, magistrado da justiça, era desfraldado para indicar que a força estava do lado da Lei e que chegara a hora das represálias...
Demétrios não teve tempo de perguntar de novo o que significava aquilo, ocupado como estava a desembaraçar-se de um garoto que, a pretexto de se içar para uma janela da casa à qual ele estava apoiado com Fiora, a escalava corajosamente. A ajuda veio-lhe na pessoa de Esteban que, tendo-o visto, usara os cotovelos e os pés para se lhe juntar. Pendurando o rapaz, que berrava e esperneava, num dos porta-archotes da dita casa, o castelhano ia puxar o seu senhor para junto de si para o tirar dali quando viu Fiora.