A culpa é tua! gritou ela para aquela sombra que voltava inoportunamente para lhe impor a sua recordação. Não devias ter partido para ir brincar aos grandes cavaleiros junto da tua princesa! Foste tu que instalaste entre nós o irreparável. Eu só tenho vinte anos! Tenho direito à vida!
A jovem esquecera por completo que, pouco tempo antes desejara morrer, de tal modo os encantos do amor podem aprisionar um ser jovem. Com todas as suas forças, queria repelir as contrariedades e a austeridade. Vivera cativa durante meses e eis que a sua prisão acabava de abrir-se para qualquer coisa que se parecia com a felicidade, mesmo que não passasse de uma aparência... E foi com um olhar pleno de desafio que, depois da refeição servida no seu quarto por Samia, foi afrontar o olhar de Demétrios quando se lhe juntou no antigo estúdio do seu pai.
Mas ele conhecia-a demasiado bem para não penetrar nos seus pensamentos e aqueles grandes olhos cinzentos carregados de nuvens de tempestade arrancaram-lhe um sorriso. Fiora, pensou ele, procurava um pretexto para se encolerizar, esperando desembaraçar-se, assim, do constrangimento que sentia. E não se enganou:
Por que esse sorriso? perguntou ela nervosamente e por que me olhas assim? Mudei alguma coisa? Sim, entreguei-me a Lourenço! Até me ofereci a ele! E, logo à noite, ele vai regressar e eu vou-me entregar outra vez a ele!
Tirando as lunetas que usava cada vez mais frequentemente, Demétrios afastou-se da estante sobre a qual abrira um manuscrito hebraico, aproximou-se da jovem e pousou as mãos nos ombros que sentiu ficarem hirtos.
Longe de mim fazer-te qualquer censura, Fiora! O que se passou a noite passada entre Lourenço e tu estava escrito há muito. Ele falou-me muitas vezes de ti, depois do meu regresso e compreendi, sem dificuldade, que tu eras a sua maior dor. Era normal que ele viesse ter contigo do fundo da sua confusão.
Nesse caso, achas que ele me ama?
Tu és como todas as mulheres: simplificas demasiadamente os sentimentos. Lourenço estava como um jardineiro que viu fugir um ladrão com a mais bela flor do seu jardim sem, sequer, lhe dar tempo de respirar. Ontem, a sua flor regressou, mas mais bela do que nunca e exalando um perfume demasiado capitoso para que ele renunciasse a embriagar-se. Quanto a ti...
Quanto a mim?
Cessa de te rebelares assim, Fiora! Tu não cometeste nenhum crime. O amor, simplesmente, devolveu-te o gosto pela vida que tinhas perdido.
O amor? Eu nem sequer sei se amo Lourenço. No entanto, seria tão simples!
Sobretudo, mais cómodo, porque tu foste moldada segundo a moral cristã, a despeito da tua educação platónica e isso deve-lo à nossa querida Léonarde.
Não me fales dela, senão fico doente de vergonha!
Tens razão, fiz mal em falar-te dela. Quanto à vergonha, é uma palavra estúpida, mesmo que não ames verdadeiramente Lourenço. O que tu amas nele, é, antes de mais, o amor que ele te dá e eu sei que ele é uma espécie de... virtuoso. Mas é também a lenda e, bem lá no fundo, continua a existir em ti a florentina, a quem o Magnífico enche o horizonte. Sem o saberes, estavas mais ou menos apaixonada por ele...
Não. Eu amava Giuliano.
Pensavas amar! A prova é que o afastaste muito depressa do teu espírito. Mas esqueces que naquele famoso baile onde nos conhecemos pela primeira vez, vi-te dançar com Lourenço e eu nunca vi um rosto tão iluminado de alegria como o teu nessa ocasião.
É verdade, estava muito feliz... e muito orgulhosa, sobretudo!
Assim como estás orgulhosa, hoje, por o teres acorrentado aos teus pés. Ele veio ter contigo como um pobre que pede caridade, de mãos vazias, nuas e suplicantes, ele, que é todo-poderoso e eu compreendi imediatamente que tu ias enchê-las de riquezas. Ao passo que o terias repelido se ele tivesse vindo como príncipe e como senhor. Acertei?
Desaparecida a cólera, Fiora desatou a rir.
Tu tens quase sempre razão, Demétrios! E que faço, agora? Tenho de partir outra vez...
Ainda não. Aliás, ainda não tens vontade. Deixa que te amem! É o melhor dos remédios, não apenas para o corpo, mas também para o coração, que acaba de sofrer muito. Entretanto...
Ele ficou silencioso por um momento e Fiora sentiu uma inquietação no espírito.
Entretanto?
Conversaram muito, os dois? Ele deve ter-te feito algumas perguntas...
A jovem ficou vermelha como um tomate e, virando-se, foi examinar o livro pousado na estante.
Nós... nem sequer falámos!
Felicitações! disse Demétrios, que não conseguiu impedir-se de rir perante o ar confuso daquele rosto jovem. E, se queres saber, sinto-me feliz por isso, mas haveis de conversar. E agora ouve-me bem e, sobretudo, não lhe digas que te casaram com um Pazzi!
Cario fez tudo para me ajudar.
Sem dúvida, mas Lourenço está demasiadamente ferido para suportar a ideia de que tu uses esse nome! Por maior que seja o seu desejo, afastar-se-ia de ti com horror. E as consequências poderiam ser dramáticas. Compreendeste?
Não tenhas medo! Não lhe direi nada.
Com um dedo cauteloso, ela virou algumas das páginas estaladiças do manuscrito que não era capaz de ler, contentando-se em admirar a beleza um pouco misteriosa dos caracteres.
O destino é uma coisa estranha suspirou ela. O meu parece comprazer-se em fazer-me contrair matrimónios que devo esconder a Lourenço. Lembras-te?
Tens razão, mas a situação é diferente. Farias melhor se esquecesses este último. Não conta, porque...
Porque?
Nada. Não penses mais nele. Pensa, apenas, no homem que vem logo à noite procurar, junto de ti, o refúgio de que tanto necessita.
Mas Lourenço não apareceu. Enviou um bilhete por Esteban, que fora dar uma volta pela cidade. O funeral de Giuliano estava marcado para a manhã seguinte e Lourenço velaria o jovem morto durante aquela última noite.
As notícias que o castelhano trouxe revelaram-se dramáticas. A perseguição aos Pazzi, seus familiares e aliados continuava. Tinham apanhado dois na cidade, dos quais um, disfarçado de mulher, estava escondido na igreja de Santa Croce, três outros tinham sido presos nos campos. Quanto ao velho Jacopo, que os cavaleiros da Senhoria tinham apanhado na estrada de Imola, devia estar a caminho de Florença numa liteira fechada. Iria para o balcão de ferro no momento em que Giuliano descesse à terra.
Outros tinham sido precipitados lá do alto, enforcados ou abandonados ao povo e, diante do Velho Palácio, o número de mortos mais ou menos decepados ascendia a setenta. Mas eram só homens, já que Lourenço proibira formalmente que molestassem as mulheres que, de facto, não tinham participado directamente no assassínio.
E Hieronyma? perguntou Fiora com azedume. Ela não fez nada?
Foi a única que o Magnífico ordenou que apanhassem disse Demétrios.
Como é que ele soube que ela estava cá?
Fui eu que lhe disse ontem, quando fui à via Larga depois de te ter trazido para aqui. Podes estar certa de que andam à procura dela.
Nada de mais verdadeiro continuou Esteban. Interroguei Savaglio, o chefe dos guardas, que orienta a perseguição e ele disse que, se encontrar esse demónio fêmea, o abate mesmo ali, mas já vasculhou as casas todas dos Pazzi, depois o palácio deles perto de Santa Croce e a villa de Montughi. Encontrou muitas mulheres em pranto e com as cabeças cobertas de cinza, mas nenhuma delas era Hieronyma.
Quando ela viu o golpe mal parado, deve ter partido logo para Roma suspirou Demétrios.
É preciso que o consiga. Todas as estradas e caminhos estão guardados e ninguém pode sair da cidade.
Mas ela não estava na cidade. Estava, justamente, em Montughi e, se não a encontraram, é porque conseguiu fugir...