"Bem... no Cairo. Porquê?" "O que esteve lá a fazer?"
"Estive na Universidade de Al-Azhar a tirar uma especialidade em islamismo e a aprender árabe."
"Porquê?"
"Ora, porque é muito útil para o meu estudo de línguas antigas do Médio Oriente. Como sabe, já falo e leio aramaico, a língua de Jesus, e hebraico, a língua de Moisés. O árabe, enquanto língua de Maomé, pode ajudar-me como instrumento de pesquisa na história das grandes religiões, uma área que me interessa muito em termos académicos. Além disso, o primeiro tratado de criptanálise está redigido em árabe."
"E aprendeu alguma coisa útil no Cairo?" "Sim, claro.
Aliás, até já dou aulas a alguns alunos muçulmanos lá em Lisboa. Porque pergunta?"
O americano inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos na mesa e cravou os olhos em Tomás.
"Ainda pergunta porquê? Então você é um excelente criptanalista, lê e fala árabe, conhece o islão a fundo e, depois de me ouvir falar sobre o tipo de ameaça a que estamos sujeitos, ainda me vem perguntar porquê? É preciso ter lata!"
O português respirou fundo e devagar. 0
"Ah, já estou a perceber tudo..."
"Ainda bem!"
"Mas não conte comigo. Eu não quero fazer parte dessa organização que você representa."
"Prefere fazer como a avestruz? Mete a cabeça na areia e finge que não se passa nada? Pois eu tenho a dizer-lhe que estão a acontecer coisas muito graves, coisas de que o público em geral não tem a mínima noção. E você pode ajudar-nos a enfrentá-las."
"Mas por que motivo hei-de eu ajudar a América?
Vocês inventaram o problema no Iraque, agora andam para aí a lamuriar-se e nós é que temos de vos ajudar?"
"Este problema não é exclusivamente americano. E
europeu também."
"Pois, pois. Vá-me contando histórias."
Bellamy torceu os lábios finos e recostou-se de novo na cadeira, a atenção sempre presa no português, os dedos entre-laçando-se uns nos outros.
"Descobrimos uma coisa, Tom. Precisamos da sua ajuda."
"Que coisa?"
"Um e-mail da Al-Qaeda."
"O que tem esse e-mail de especial?"
"Não lhe posso dizer agora. Esta informação só lhe poderá ser fornecida se. você se juntar a nós." "Isso é tudo conversa!"
O esboço de um sorriso perpassou pelo olhar gelado e calculista do homem da CIA.
"Diga-me uma coisa, Tom. Gosta de Veneza?"
Tomás não percebeu a mudança de direcção na conversa e ainda hesitou na resposta, mas deixou-se embalar, sempre queria ver onde iria aquilo dar.
"É uma das minhas cidades favoritas. Porquê?"
"Venha comigo a Veneza."
O português soltou uma gargalhada.
"Eu gosto de Veneza, mas confesso que, para companhia, idealizava outro tipo de pessoa... uma figura talvez mais curvilínea, não sei se está a ver o género. Além do mais, encontro-me aqui de férias com a minha mãe e não a vou abandonar."
"E quando acabam essas férias?"
"Depois de amanhã."
"Então é perfeito. Eu parei aqui nos Açores a caminho de Veneza. Encontramo-nos lá dentro de três dias." "Mas o que há em Veneza assim tão especial?" "O Grande Canal." Tomás voltou a rir-se.
"E que mais?"
"E uma senhora que quero que você conheça."
"Quem?"
Frank Bellamy ergueu-se, dando o almoço por encerrado. Tirou a carteira do bolso e, com um gesto displicente, largou uma nota gorda sobre a mesa antes de responder.
"Uma brasa."
IV
O homem que apareceu ao fundo do corredor tinha de certo modo um aspecto ascético. Era magro, vestia uma jalabiyya, a longa túnica branca que os homens mais religiosos habitualmente usam, e ostentava uma barba negra, larga e farfalhuda.
"É ele! É ele!", disse uma voz excitada entre o grupo de rapazes que aguardava à porta da sala.
"Ele, quem?", perguntou Ahmed, mirando interroga-doramente a figura que percorria com tranquilidade o corredor.
"O novo professor, estúpido!"
O professor de Religião tinha-se aposentado no ano anterior, pelo que havia agora um novo responsável por aquelas aulas. Ahmed frequentava uma madrassa financiada pela Al-Azhar, a mais poderosa instituição de ensino do mundo islâmico.
Estudava Matemática, Árabe e o Alcorão. A matéria religiosa ocupava mais de metade do tempo de aulas na
madrassa, embora os seus principais conhecimentos sobre o islão lhe fossem transmitidos em casa ou na mesquita pelo xeque Saad, com quem aprendia havia já quase cinco anos. Passou quase todo esse tempo, não a discutir o islão, mas a decorar o Alcorão, tarefa que o enchia de entusiasmo e o fazia sentir-se adulto. Chegara já à sura 24 e sabia que, quando tivesse todo o Livro Sagrado na ponta da língua, atrairia grande respeito pela sua família e seria considerado um menino muito pio.
O aparecimento daquele homem ao fundo do corredor, porém, tudo iria mudar. O novo professor aproximou-se da porta da sala e abrandou. Fez com a cabeça sinal aos alunos de que entrassem e foi ocupar o seu lugar diante da classe.
"As saldam alekum", cumprimentou. "Chamo-me Ayman bin Qatada e sou o vosso novo professor de Religião. Vamos começar a aula por recitar a primeira sura."
As lições iniciais foram em tudo semelhantes a outras que Ahmed tivera sobre o islão, ali na madrassa, em casa ou na mesquita. O professor Ayman era senhor de uma voz rica e enganadoramente suave. As suas palavras e o tom em que as proferia adquiriam por vezes tanta força nos momentos certos que, ao fim de algumas aulas, o professor se revelou capaz de galvanizar os alunos e inflamar a classe com tiradas vibrantes de emoção.
Foi-se tornando gradualmente claro que as suas aulas não eram apenas ocupadas pela memorização em coro do Alcorão. Interessante e imaginativo, o professor Ayman contava muitas histórias e encorajava os alunos a participarem, o que fazia daquelas lições de Religião um momento muito animado. Eram talvez as aulas mais interessantes que havia na madrassa.
A certa altura, a matéria começou a revelar-se um pouco diferente da que o anterior professor havia dado ou daquela que o xeque Saad ensinava a Ahmed em casa ou na mesquita. Até que chegou o dia em que veio a lição mais inesquecível de todas.
Depois da recitação de algumas suras, o professor Ayman não se concentrou nas mensagens de virtude do Alcorão, como era habitual nas aulas do seu antecessor, njas anües na história do islão. Com um brilho nos olhos e um timbre ardente e inflamado na voz, dedicou toda aquela hora a falar sobre a grandeza do império erguido em nome de Alá.
"Maomé, que a paz esteja com ele, começou a expansão do islão com a força da espada", explicou o professor Ayman, brandindo o punho no ar como se ele próprio segurasse uma cimitarra ensanguentada.
"Quando estava em Medina, o Profeta, que Deus o tenha para sempre na Sua guarda, iniciou a conversão dos Árabes à verdadeira fé. Fê-lo pela pregação, mas também lançando uma guerra contra as tribos de Meca. Foram precisas vinte e seis batalhas, mas o mensageiro divino, com a graça de Alá, acabou por submeter todo o povo árabe e convertê-lo ao islão. Quando os muçulmanos se juntaram em Meca para o primeiro Hadj, Maomé, que a paz esteja com ele, subiu ao monte Arafat e fez o seu discurso de despedida." O professor inspirou fundo, como se nesse instante emulasse o Profeta.
"«Depois de hoje já não haverá mais duas religiões a coexistir na Arábia»", disse, citando as palavras de Maomé. "«Eu desci por Alá com a espada na minha mão e a minha riqueza virá da sombra da minha espada. E aquele que discordar de mim será humilhado e perseguido.»"