Os alunos não conheciam estas palavras do Profeta, mas, ao ouvi-las da boca exaltada do professor, a turma inteira ergueu-se a uma só voz.
"Allah u akbar!", gritaram os alunos em uníssono.
"Deus é o maior!"
Ayman sorriu, agradado com a reacção de fervor religioso. O burburinho, porém, revelou-se talvez ruidoso de mais e o homem fez com as duas mãos um gesto para impor o regresso do silêncio à sala.
"Dias depois do sermão final, Maomé, que a paz esteja com ele, apanhou uma febre que durou vinte dias e acabou por morrer. Tinha sessenta e quatro anos de idade quando Alá o chamou para o jardim eterno. Por essa altura já toda a Arábia era muçulmana."
"Allah u akbar!", voltaram a entoar os alunos, desta vez repetidamente. "Allah u akbar!"
O professor pediu de novo calma.
"Pensam que a morte do Profeta, que a paz esteja com ele, foi o fim da história?" Abanou a cabeça.
"Não foi. Foi apenas o princípio de uma grande e gloriosa epopeia. Após a morte de Maomé, que a paz esteja com ele, a utnma ficou temporariamente dividida, mas acabou por escolher um sucessor.
Sabem quem foi?"
"O califa", respondeu um aluno de imediato.
"Claro que o sucessor foi o califa", disse Ayman, um pouco exasperado com a resposta. "Califa quer dizer sucessor, toda a gente sabe isso. O que eu quero saber é quem foi o primeiro califa."
"Abu Bakr", disseram outros dois.
"Abu Bakr", confirmou o professor. "Ele era um dos sogros de Maomé, que a paz esteja com ele. Abu Bakr e os três califas que se lhe seguiram são hoje conhecidos como os quatro Califas Bem Guiados, por terem ouvido a revelação dos lábios do próprio Profeta e por terem aplicado a sharia, protegido a umma e atacado os kafirun."
Todos os alunos na sala sabiam que a sharia era a lei do islão, a umma o conjunto universal da comunidade islâmica e os kafirun os infiéis, plural de kafir, mas houve uma mão hesitante que se levantou.
Pertencia a Ahmed, para quem a afirmação do Profeta de que a sua riqueza viria da sombra da espada constituía novidade; jamais o xeque Saad ou o anterior professor na madrassa lhe haviam falado naquela declaração.
"E como foi que o fizeram, senhor professor?"
"Ora, da mesma forma que o Profeta, que a paz esteja com ele, o fez! Com o Santo Alcorão numa mão e a espada na outra! Abu Bakr exerceu o califado em pleno respeito pela Justiça de Deus, contemporizando quando era de contemporizar, punindo quando era de punir. E o segundo califa, Omar ibn Al-Khattab, lançou uma grande jihad contra as nações que faziam fronteira com a Arábia, como aqui o Egipto e também a Síria, a Pérsia e a Mesopotâmia, para expandir a fé e o império. Com a graça de Alá, conquistámos ainda Al-Quds." Ergueu o punho vitorioso. "Allah u akbarV
"Allah u akbar!", devolveu a turma, entusiasmada.
Nenhuma desta matéria trazia necessariamente novidades, mas o novo professor tinha o condão de a apresentar de uma forma que os alunos achavam bem mais interessante.
"Crescemos e prosperámos, espalhando a sharia pelo mundo conforme ordenado por Alá no Santo Alcorão!" O tom entusiástico e inflamado de Ayman tornou-se subitamente lúgubre. "As coisas complicaram-se, no entanto, com a morte de Uthman bin Affan, o terceiro dos quatro Califas Bem Guiados. E que ele foi assassinado por revoltosos muçulmanos, os Kharij. Quando Ali ibn Abu Talib, o quarto califa, começou a reinar, decidiu não vingar a morte do terceiro califa por recear que a insurreição dos Kharij alastrasse. Só que isso ia contra a sharia e os mandamentos divinos, conforme notou o governador da Síria, Muawiyya, que exigiu a punição dos Kharij. Como o califa Ali não cedeu, Muawiyya concluiu que Ali estava em violação da sharia e já não era o califa legítimo, pelo que se revoltou. Ali respondeu, argumentando que ele era o sucessor de Maomé e que o Profeta, que a paz esteja com ele, jamais permitiria uma revolta contra si, pelo que esta revolta significava ela própria a violação da sharia. A umma dividiu-se assim essencialmente em dois campos: os xiitas, que apoiavam Ali, e os sunitas, que apoiavam Muawiyya.
Seguiram-se muitas batalhas, mas Ali acabou por morrer e Muawiyya tornou-se califa, iniciando assim a primeira dinastia de califas, a dinastia omíada."
"Nós somos sunitas, não somos?", perguntou um aluno.
"A umma é sunita", sentenciou Ayman. "Só o Irão é xiita. O Irão e partes do Iraque e do Líbano. Mas os muçulmanos legítimos somos nós, os sunitas. Vamos de Marrocos ao Paquistão, da Turquia à Nigéria, somos a verdadeira umma. Os xiitas estão em apostasia por terem ficado com Ali depois de ele ter violado a sharia e por andarem a adorar santos, como Ali e o seu filho Hussein."
"E depois?", quis saber outro aluno.
"E depois o quê?"
"O que aconteceu quando a primeira dinastia de califas começou?"
"Ah, a dinastia omíada...", exclamou o professor, retomando o fio à meada. "Pois... seguiram-se tempos turbulentos, claro. O califado ficou sedeado em Damasco, mas os Kharij continuavam em insurreição, o que impediu o exército islâmico de se concentrar na sua missão principal, a expansão e a conquista, para se ocupar da pacificação do império. Muawiyya recorreu a todos os métodos possíveis, incluindo a matança em grande escala, até que acabou por pôr fim à revolta dos Kharij. Mas o mais importante é que o seu filho Yazid, quando se tornou califa, esmagou uma outra revolta, conduzida por Al-Hussein ibn Ali, um neto de Maomé, que a paz esteja com ele. O califa decapitou Hussein e exterminou a sua família."
A turma reagiu em choque a esta revelação. „
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"O califa matou o neto do Profeta?", admirou-se um aluno, os olhos arregalados.
"Ele pôde fazer isso?", quis saber outro.
"Maomé, que a paz esteja com ele, foi um grande homem", disse o professor. "Mas, atenção, ele era um homem, não era Deus nem se fazia passar por tal.
Todos os homens se devem submeter à sharia, incluindo os descendentes do Profeta, porque as leis de Alá são universais e eternas. A violação da sharia pode implicar apostasia e o Enviado de Deus estabeleceu a pena de morte para esse crime." Inclinou a cabeça, como se fizesse uma concessão. "Mas também é verdade que a matança de descendentes do Profeta, que a paz esteja com ele, chocou a umma e foi por isso que os abássidas, que eram leais à família de Maomé, assassinaram o último califa dessa dinastia e puseram fim aos omíadas."
"Acabaram os califas?"
"Não, começou a segunda dinastia de califas, a dos abássidas."
"Ah! Então a umma ficou unificada..." O
professor Ayman hesitou.
"Bem, não exactamente. A prioridade dos abássidas foi exterminar os omíadas até ao último.
Não foi por acaso que o primeiro califa desta segunda dinastia, Abu al Abbas, ficou conhecido por o Exterminador. Ele mandou matar qualquer omíada que ainda vivesse, mesmo que fosse uma mulher, um velho ou uma criança. E, quando acabaram de os exterminar a todos e já não havia mais ninguém para matar, foram exumar-lhes os ossos e esmagá-los."
"Não escapou ninguém?"
"Apenas Abdul Rahman, que fugiu para o Al-Andalus e reconstituiu o califado omíada em Córdova. Os outros morreram todos."
"Mas isso não permitiu unificar a umma, senhor professor?"
"Infelizmente, não. Os abássidas transferiram a sede do califado para Bagdade, mas o nosso império começou a fragmentar-se devido às múltiplas cisões internas. Apareceram estados independentes, surgiram os fatimidas, os mamelucos... eu sei lá, foi uma confusão. A única coisa que nos manteve unidos, para além do Santo Alcorão, foram as agressões ex-ternas que entretanto se deram. Foi nessa altura que os kafirun vieram da Europa e atacaram Al-Quds e a Terra Santa, apa-nhando-nos fragilizados."