Todos os alunos presentes na sala sabiam que os kafirun, ou infiéis, da Europa a que o professor se referia eram os cruzados que conquistaram Al-Quds, o nome árabe de Jerusalém. "Pouco depois sofremos as invasões dos Mongóis, que ocuparam Bagdade e puseram fim a quinhentos anos de dinastia abássida."
Fez uma curta pausa, como se preparasse o que ia dizer a seguir. "E depois? Quando os Mongóis se instalaram na capital do califado, quem de entre nós se ergueu contra eles?"
Passeou o olhar pela sala silenciosa. Os alunos faziam um esforço para pensar num nome, mas nada lhes ocorria.
"Quem?", perguntou Ayman de novo.
"Saladino?", arriscou uma voz.
O professor soltou uma gargalhada.
"Saladino venceu os kafirun da Europa. Eu estou a referir--me a quem se ergueu contra os Mongóis.
Quem?"
O silêncio mais completo foi a resposta.
"Nunca ouviram falar de Ibn Taymiyyah?"
Muitas cabeças balouçaram afirmativamente; os alunos reconheciam aquele nome. Ahmed não era porém um deles; nunca tinha ouvido falar em tal figura.
"Quem foi Ibn Taymiyyah?", perguntou o professor.
"Foi um grande muçulmano", retorquiu um ^Jos alunos que identificara o nome.
"Um gigante!", atalhou Ayman. "O xeque Ibn Taymiyyah foi um gigante. Nasceu dez anos depois da invasão mongol e o seu pai tornou-se imã da mesquita de Damasco. Os mamelucos continuaram a combater os Mongóis, mas o problema é que a elite mongol se converteu ao islão. Como sabem, o Profeta, que Alá o abençoe, proibiu que se matassem muçulmanos. Se os Mongóis se tornaram muçulmanos, isso significava que já não poderiam ser combatidos.
Ou poderiam? O xeque Ibn Taymiyyah consultou os textos sagrados, analisou o assunto e emitiu uma fatwa a legalizar a jihad contra os Mongóis, dizendo:
«Está provado pelo Livro e pela sunnah e pela unanimidade da nação que quem se desvie de uma única das leis do islão será combatido, mesmo que tenha proferido as duas declarações de aceitação do islão.» E o xeque também disse: «Fé é obediência. Se uma parte dela estiver em Alá e outra não estiver em Alá, terá de haver combate até que toda a fé esteja em Alá.» Desse modo, o xeque Ibn Taymiyyah deu cobertura legal e divina à guerra contra os Mongóis convertidos ao islão. O xeque disse aos nossos soldados que a derrota que haviam sofrido diante do inimigo era como a derrota de Maomé, que a paz esteja com ele, na batalha de Uhud, mas que a sua insurreição seria como o triunfo do Profeta, que a paz esteja com ele, na batalha das trincheiras. Os acontecimentos seguintes provaram que ele tinha razão. Com a ajuda espiritual do xeque Ibn Taymiyyah,
os
Mongóis
foram
finalmente
derrotados." O professor estendeu as mãos para cima. "Deus é o maior!"
"Allah u akbarr, repetiram os alunos, de novo galvanizados.
"O xeque Ibn Taymiyyah ainda era vivo quando nasceu o grande Império Otomano, que deu origem ao terceiro califado, com a capital em Istambul. Os Otomanos destruíram o Império Romano do Oriente, assumiram
o
controlo
de
Constantinopla,
conquistaram os países vizinhos e atacaram os kafirun europeus por todo o lado. O grande califado otomano chegou às portas de Viena e durou quase sete séculos. Mas os Otomanos e a umma começaram a desviar-se da sharia e a ceder à tentação de obedecer a leis humanas, não à lei de Alá. Isso aconteceu numa altura em que os kafirun se puseram a desenvolver máquinas e mais máquinas, cada vez mais poderosas. O resultado foi a fragilização dos Otomanos, e com eles de toda a umma. Até que, em 1924, o califado otomano foi extinto."
"Que Alá amaldiçoe os kafirun!", berrou Abdullah, um rapaz sentado mesmo atrás de Ahmed. "Morte aos infiéis!"
"Sim, os kafirun estão por detrás do fim do grande califado", disse o professor Ayman. "Mas a decisão de acabar com o califado foi tomada pelo novo emir turco, Mustafa Kemal, que arda para sempre no grande fogo. Este apóstata auto-intitulou-se Atatürk, o pai dos turcos, mas estava evidentemente sob a diabólica influência dos kafirun e da sua cultura no momento em que decidiu separar a religião do estado. Teve até o desplante, vejam só, de transformar a grande mesquita de Santa Sofia num museu!"
"Morte ao apóstata!", gritou o mesmo Abdullah.
Um outro secundou-o de imediato:
"Que Alá o retenha para sempre no Inferno!"
O professor ergueu as mãos, procurando sossegar a turma. Queria incutir nos alunos o orgulho de serem muçulmanos, mas não estava nos seus projectos iniciar ali um motim.
"Calma, calma!", pediu. "Tenham calma!"
A sala serenou, com o bruá de vozes a amansar.
Ahmed, que até ali se havia mantido calado a digerir tudo o que ouvia, deu consigo de mão erguida a pedir para falar. *
O olhar do professor pousou nele.
"Sim, rapaz. O que é?"
Ahmed sentia o coração a ribombar-lhe no peito, forte e descontrolado; não sabia se era de nervosismo por falar em público ou de indignação pelo que os kafirun haviam feito à umma.
"Senhor professor, como podemos ter calma?", perguntou num tom empertigado. "Neste momento não há nenhum califado! O senhor disse há pouco que o profeta Maomé deixou os califas como seus sucessores. Se agora estamos sem califa, não estaremos nós a desrespeitar a vontade do apóstolo de Deus?"
O professor Ayman aproximou-se de Ahmed e passou-lhe a mão pelo cabelo, mostrando que achara aquela pergunta muito pertinente.
"Tende paciência e esperai. A umma vai acordar."
"Mas quando, senhor professor? Quando?"
O professor respirou fundo e fez um sorriso enigmático antes de voltar costas.
"Em breve."
V
A faixa de água era uma estrada a cortar a cidade e a lancha acelerava pelo Grande Canal como se fosse um bólide desportivo, ziguezagueando entre os pesados vaporetti, as elegantes gôndolas e os táxis ligeiros, mas o olhar de Tomás mantinha-se preso sobretudo às deslumbrantes fachadas bizantinas que o espelho líquido reflectia em ondulação; viam--se palacetes lado a lado, desfilando pálidos e orgulhosos, ocasionalmente com as luzes interiores acesas, o que permitia vislumbrar pelas janelas múltiplos quadros, candelabros e estantes de livros, sempre por baixo de tectos cuidadosamente trabalhados.
"Falta pouco", prometeu Guido, o guia italiano que fora esperar Tomás ao aeroporto.
Havia já alguns anos que o historiador não vinha a Veneza e regressar à grande e velha cidade dos canais revelava-se uma experiência de cortar a respiração. Pousou os olhos na água; o mar era verde-garrafa e pequenas vagas gorgulhavam de encontro à base da lancha. Inspirou o ar fresco da tarde. Cheirava a maresia e as gaivotas grasnavam sem cessar; num instante os pipilares pareciam alegres e no seguinte melancólicos.
A lancha flectiu para a esquerda, o Grande Canal abriu-se e revelou as torres da San Giorgio Maggiore ao fundo à direita. A embarcação atravessou o Bacino di J»an Marco, passando ao lado da grande praça e do imponente Campanile, à esquerda, e encostou perto da movimentada Ponte delia Paglia.