Выбрать главу

Pararam um instante, numa expectativa receosa. "O

que é isto?", ouviram uma voz adulta gritar do outro lado.

Tomados de pânico, deram meia volta e correram como desesperados, correram pela rua de terra avermelhada, correram a levantar poeira atrás das sandálias, correram até à ponte e para além dela, correram até chegarem ao seu bairro e pararem para recuperar o fôlego e rirem-se de nervosismo e excitação.

Por Alá, como se sentiam orgulhosos! Haviam dado uma lição aos kafirun.

Durante as aulas de Religião na madrassa, o professor Ayman falava abundantemente da história do islão, e em particular dos grandes confrontos com os kafirun. Descrevia o massacre feito pelos duzentos mil soldados do Império Romano do Oriente entre os três mil homens do exército de Maomé quase como se tivesse acontecido na semana anterior, e no mesmo tom abordava as guerras com os cruzados por causa de Jerusalém, ou Al-Quds.

"Quando Omar conquistou Al-Quds recusou-se a rezar numa igreja para que ninguém se atrevesse a transformá-la numa mesquita", contou. "Deu ordens para que os kafirun cristãos não fossem molestados e autorizou o regresso dos kafirun judeus, cuja entrada em Al-Quds havia sido proibida pelos cristãos. Pois sabem o que fizeram os kafirun cristãos quando tomaram Al-Quds durante as cruzadas?"

Os alunos ficaram calados, à espera que o professor respondesse à sua própria pergunta.

"Mataram todos os crentes! Homens, mulheres, velhos, crianças... ninguém escapou! Ninguém!

Passaram todos os fiéis pelo fio da espada!" A voz tornou-se arrebatada e o tom empolgado e vibrante.

"E não se ficaram por aí, esses cães. Atreveram-se a transformar a sagrada Cúpula do Rochedo numa igreja, vejam só! E à santa mesquita de Al-Aqsa, sabem o que lhe fizeram, sabem? Mudaram-lhe o nome e passaram a chamar-lhe Templo de Salomão!

Templo de Salomão, vejam bem! Pegaram na santa mesquita de Al-Quds e fizeram dela a morada do emir kafir. Foi isso o que eles fizeram!"

Um burburinho indignado percorreu a sala.

"Os kafirun odeiam-nos", concluiu, repetindo a frase com que terminava cada uma destas histórias.

"Eles querem exterminar o islão."

Atrás de uma história vinha outra e outra ainda.

Ayman gostava de as contar e os alunos adoravam escutá-las. Comparava o comportamento dos cristãos com o dos muçulmanos, repetindo sempre com novos pormenores a história de Saladino, o grande emir muçulmano que, ao conquistar Jerusalém, deixara sair em liberdade todos os cristãos e até indemnizara as viúvas e as órfãs dos soldados cristãos mortos em combate.

"Acham que os kafirun mereceram tamanha consideração?", perguntava sempre o professor depois de uma nova descrição dos actos de Saladino.

"Por Alá, não!", respondia a turma.

"Os kafirun exterminaram os três mil mártire»do exército de Maomé, que o seu nome seja para sempre sagrado! Os kafirun mataram todos os crentes em Al-Quds! Os kafirun de Napoleão invadiram o Egipto e a Síria! Os kafirun vieram para as nossas terras mandar no nosso petróleo! Os kafirun impuseram governos-fantoches para nos governarem à vontade deles! Os kafirun impõem-nos leis que vão contra a sharia! Será que ainda merecem tanta consideração?"

"Por Alá, não!"

Os ataques ao bairro cristão copta foram-se tornando mais arrojados. Ahmed e o seu grupo enchiam os bolsos das jalabiyya de pedras, atravessavam a ponte e atacavam casas cada vez mais longe. Chegaram até a apedrejar um restaurante, mas fugiam sempre que aparecia um adulto e voltavam em corrida para o seu bairro. No final de cada um destes raides, a adrenalina fazia-os sentirem-se tão bravos como Saladino, embora talvez menos clementes.

Mesmo sabendo que os seus pais desaprovariam os ataques, Ahmed acreditava que cumpria assim o seu dever de bom muçulmano. Tinha consciência, no entanto, de que respeitava apenas uma parte das suas obrigações de crente. A outra, mais espiritual, decorria no recolhimento da mesquita ou na memorização diária do Alcorão. Mas o maior desafio espiritual que enfrentava aparecia todos os anos no mesmo mês.

O Ramadão.

Quando o mês sagrado chegou pela primeira vez depois de conhecer o xeque Saad, Ahmed decidira em segredo cumprir o quarto pilar do islão, o sawm, ou jejum. As crianças estavam isentas de sawm, como os pais e o mullab lhe disseram abundantemente, mas Ahmed acreditava que era seu dever de bom muçulmano respeitar o jejum.

"O sawm ajuda-nos a termos uma ideia do que sofrem os menos afortunados que não têm comida", explicou-lhe o xeque numa ocasião em que falaram do Ramadão. "Os bons muçulmanos devem jejuar em obediência a Deus."

No mês sagrado Ahmed acordava antes do amanhecer, como já fazia anteriormente, mas dessa feita passou a comer com a família uma refeição leve e muito insonsa à luz das lâmpadas amareladas da sala. O sal era evitado para não dar sede, uma vez que o jejum se estendia às bebidas. O sawm começava ao alvorecer, altura que a mãe fazia a merenda para os filhos levarem para a escola.

Os cinco irmãos saíam de casa pelas oito da manhã.

Ahmed e os dois mais velhos iam para uma madrassa, as irmãs dirigiam-se a outra. Uma vez na escola, o rapaz atirava a comida para o lixo e passava o dia em jejum. Custaram-lhe mais as primeiras horas e os primeiros dias sem comer, mas ao fim de algum tempo começou a habituar-se e, embora sentindo alguma fraqueza e uma certa irritabilidade, lá foi respeitando o sawm às escondidas.

Descobriu assim que a melhor hora do Ramadão era a do crepúsculo. Quando o Sol se punha para lá do horizonte avermelhado e da mesquita soava o chamar melancólico do muezzin à oração, a mãe espalhava pela mesa tâmaras e jarros com água, que todos consumiam de imediato, os mais pequenos também, apesar de os adultos presumirem que eles não tinham jejuado. Seguia-se a oração do princípio da noite

e o grande jantar, verdadeiramente opíparo: a mesa enchia-se

dos melhores pratos, como ricos koshari, deliciosos taamiyya

ou suculentos molokhiyya, acompanhados de pão baladi e

queijo domiati, tudo regado a muito chá e iogurte; a fechar

vinham os inevitáveis doces de baklava variada, que o rapaz

devorava com indisfarçável gula. ^ m Ahmed abraçou o Ramadão como o mês das boas acções. Para além de se preocupar com a confecção do jantar, a mãe aproveitava o ócio do dia para cozinhar comida para os pobres. O filho, piedoso e imbuído de um espírito de boa vontade, aproveitava os feriados de sexta-feira para a ajudar; depois levava a panela para a mesquita, onde entregava a comida para ser distribuída pelos necessitados.

Quando nessa primeira vez em que respeitou o sawm em segredo chegou a Lailat al-Qadr, a Noite do Poder, que assinalava a primeira revelação recebida por Maomé na gruta de Meca, já perto do fim do mês sagrado, Ahmed não pregou olho. Passou a noite inteira a rezar, acreditando na promessa feita por Deus de que, naquela noite, nenhuma oração passaria despercebida.

"Está escrito no Livro Sagrado: «A Noite do Poder vale mais do que mil meses»", dissera-lhe o xeque Saad durante uma lição na mesquita, recitando de cor os versículos 3 e 4 da sura 97. "«Nela descem os Anjos e o Espírito com a permissão do teu Senhor para executarem todas as Suas ordens»."