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A Noite do Poder tem mais poder do que mil meses? Os anjos descem à Terra nesta noite para executar as ordens de Alá? Ele próprio foi consultar o Alcorão e leu e releu a sura 97. Era verdade, estava lá! Como não aproveitar para rezar a noite inteira, se ela valia mais do que mil outras noites?

Rezou por isso horas a fio, mas a verdade é que não tinha muito a pedir a Deus. Claro, como bom muçulmano, seria mais piedoso se rezasse pelos pobres e pelos desfavorecidos. E rezou. Precisava também de rezar para que fosse sempre honesto e íntegro, como requeria o Alcorão, e que Alá lhe desse forças para que respeitasse escrupulosamente as Suas leis e não o deixasse cair em tentação. E

rezou.

Passou doravante a cumprir o sawm na íntegra no Ramadão, mesmo que em segredo, e a rezar na Noite do Poder até de madrugada. Às habituais orações que fazia desde os sete anos, depois de conhecer o professor Ayman passou a acrescentar outras preces nessa noite sagrada. A partir dos doze anos rezou pelos desfavorecidos e rezou pela incorrupti-bilidade da sua alma. Mas, a partir dessa altura, achou que deveria rezar igualmente pelo islão nessa sua hora difícil, deveria rezar para que o Profeta tivesse enfim um sucessor, deveria rezar para que o califado fosse restaurado.

E rezou.

Toe. Toe. Toe.

Alguém bateu à porta com suavidade à hora do almoço. O Ramadão já tinha passado havia cerca de um mês e toda a família estava à mesa a comer um cabrito assado.

"Ahmed, vai ver quem é", ordenou o pai, agarrado a um pedaço de carne.

O filho ergueu-se e foi abrir a porta. Do outro lado viu um homem de olhar submisso e corpo curvado.

"O senhor Barakah está?"

Ahmed olhou em direcção à sala.

"Pai, é para si."

"Quem é?"

"É um senhor. Quer falar consigo."

ss O senhor Barakah limpou as mãos a um guardanapo e levantou-se. Ahmed foi sentar-se à mesa e não prestou atenção à conversa que começou à porta.

Instantes mais tarde, porém, ouviu a voz do pai troar pelo ar.

"Ahmed, anda cá!"

O tom era inesperadamente imperativo e o rapaz deu um

salto de susto na cadeira.

„. »

"Anda cá, já te disse!"

Ahmed levantou-se, interrogando-se sobre o que se passaria e o que teria acontecido para irritar assim o pai. Aproximou-se a medo da porta, onde ele permanecia. O visitante encontrava-se ainda do lado da rua e tinha a cabeça baixa, como um penitente.

"Sim, pai?"

Paf.

Nem a viu chegar. A estalada foi repentina e brutal, de tal modo forte que o rapaz cambaleou e embateu desamparado contra a parede.

"Não tens vergonha?", gritou o pai, puxando-o de novo para a porta. "Não tens decência?"

"O que foi, pai?", ainda conseguiu perguntar, a voz embargada. "O que fiz eu?"

Paf.

Mais uma estalada, desta feita na outra face.

"O que fizeste? Ainda tens o descaramento de me perguntar o que fizeste?" Agarrou-o pelo pescoço e forçou-o a encarar o visitante. "Conheces este senhor?"

Com o olhar embaciado pelas lágrimas, Ahmed fitou o desconhecido.

"Não", balbuciou, abanando a cabeça.

"Este senhor mora no outro lado do canal, no bairro cristão. Diz que tu e os teus amigos foram lá apedrejar-lhe a casa. É verdade?"

Ahmed sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo e olhou melhor para o visitante de olhar submisso e tronco curvado. Era isto um kafir? Era aquilo um temível cruzado? Era aquela gente que andava a humilhar o islão?

"Responde", insistiu o pai, abanando-o como a um saco de batatas. "É verdade?"

Foi a vez de Ahmed baixar a cabeça.

"Sim", murmurou.

Sem largar o filho, o senhor Barakah olhou para o visitante, apresentou-lhe desculpas e despediu-se.

Quando o desconhecido se afastou, fechou a porta e arrastou o rapaz para o seu quarto. Uma vez a porta trancada, Ahmed viu o pai tirar o cinto das calças e de imediato soube o que o esperava.

Maldito kafir.

VII

A porta da Sala dei Maggior Consiglio abriu-se e Frank Bellamy reentrou acompanhado de um homem baixo e redondo, de barba grisalha e pequenos óculos encavalitados na ponta do nariz. Tinha um ar tão patusco e inofensivo que o vizinho de Tomás se inclinou na direcção do português e sussurrou um gracejo.

"Se a Mossad for toda assim, Israel está perdido!"

O historiador sorriu por cortesia, mas manteve a atenção fixa nos dois homens que se aproximavam da mesa. Bellamy indicou ao seu convidado um lugar para se sentar.

"Meus amigos, apresento-vos o David Manheimer."

O recém-chegado inclinou a cabeça para cumprimentar os presentes.

"Shalom"

O grupo devolveu a saudação e o homem da CIA retomou a apresentação.

"Como alguns de vocês sabem, o David é o nosso elemento de ligação à Mossad e tem grande experiência no estudo de

grupos terroristas islâmicos. Ele interrogou muitos desses terroristas e traçou-lhes um perfil e um quadro motivacional que se tornou uma referência para os serviços de informações de todo o mundo ocidental. E um privilégio tê-lo aqui connosco, mesmo que apenas por breves instantes, uma vez que ele tem de voltar à sua outra reunião." Sorriu para o israelita. "Go on, David."

O homem da Mossad afinou a voz.

"O que posso dizer que vocês não saibam já?", perguntou num inglês gutural. "O terrorista religioso é um zelota. Tem tendência a concentrar-se num único valor e a excluir todos os outros. No caso dos terroristas muçulmanos, o valor central é obedecer a Alá e ao Profeta e impor a lei islâmica, custe o que custar. A religião explica-lhes o mundo e o seu lugar enquanto indivíduos, mas ao mesmo tempo impulsiona-os à acção. Para estes zelotas não existem áreas cinzentas, mas branco e negro, e todas as ambiguidades morais são destruídas. As coisas são ou não são, não há meio-termo. Os terroristas vêem-se a si mesmos como o povo de Deus e aos outros como o inimigo de Deus, e assim desumanizam o adversário ao ponto de o quererem matar como quem mata... formigas, por exemplo.

Pretendem purificar o mundo e não percebem que apenas o conspurcam ainda mais."

"Uns malucos, portanto", observou uma voz.

Manheimer olhou imediatamente para o homem que falara, um indivíduo magro, com os malares muito salientes.

"Nem pense nisso", corrigiu-o, peremptório. "Todos os testes psicológicos que lhes fizemos mostram que estamos a lidar com pessoas perfeitamente normais.

Não são psicopatas nem sequer desequilibrados. São pessoas como quaisquer outras. Aliás, se reparar, quando a polícia vai falar com vizinhos e conhecidos de um terrorista depois de ele ter cometido um atentado, a resposta típica é de completa surpresa, uma vez que todos o achavam absolutamente banal. E

é o que eles são! Muitos terroristas mostram-se até bastante simpáticos e afáveis, ninguém diria que eles fazem estas coisas terríveis."

"De certeza que não são loucos?"

"Absoluta! Se quiser, a única fraqueza psicológica c#mum que lhes encontramos é sofrerem quase todos de um forte complexo de inferioridade. Eles convivem mal com o domínio intelectual, cultural e tecnológico do Ocidente. Como não o conseguem igualar, sentem-se complexados e então rejeitam o Ocidente, agarrando-se à religião e declarando-a superior a tudo. Ora só proclama superioridade, como sabe, quem sente inferioridade. O que eles fazem é racionalizar esse complexo de inferioridade, convencendo-se a si próprios de que eles é que são superiores, eles é que são bons, eles é que têm razão. Na verdade, os terroristas muçulmanos encaram-se a si mesmos como santos e mártires, pessoas que abraçam causas nobres, que dão a vida para o bem da humanidade. O facto é que estão apenas a exorcizar o seu complexo de inferioridade."