Bellamy ficou um longo segundo a fitá-lo, com uma expressão algures entre pensativa e irónica.
"Que eu me lembre, você não veio apenas assistir a uma reunião..."
"Ai não? Então vim cá fazer o quê?"
"Veio ajudar-nos a decifrar um e-mail da Al-Qaeda."
"Mas o senhor disse que eu só poderia ter acesso a esse
e-mail se aceitasse integrar a NEST. Ora que eu saiba ainda não aceitei tal coisa."
"Vai aceitar."
O historiador riu-se.
"O que lhe dá tanta certeza?"
"A pessoa que lhe vou apresentar. Ela está quase a chegar." "Está a falar de quem?"
O rosto do americano abriu-se no seu habitual sorriso sem humor.
"Da brasa, claro."
VIII
Os dedos magros do xeque deslizaram docemente sobre o couro da capa do Alcorão, como se o mestre acreditasse que, com aquele gesto, estava a acariciar Deus.
"Porque fizeste isso?", perguntou o xeque Saad, a voz melíflua.
Ahmed manteve o rosto hirto, os olhos a segurarem o olhar do mestre, convicto de que nenhuma censura o afastaria do caminho da verdade.
"São kafirun, xeque."
"E depois? Que mal te fizeram eles?"
"Fizeram mal ao islão. Quem faz mal ao islão faz mal a Alá e faz mal à umma. E quem faz mal a Alá e à umma faz-me mal a mim."
"Achas mesmo isso?"
"Sim."
"Foi isso que eu te andei a ensinar nestes últimos cinco anos? Foi isso o que aprendeste comigo? Foi isso o que aprendeste nesta mesquita?"
O rapaz baixou cabeça e não respondeu. O xeque cofiou a barba, pensativo.
"Quem é que te anda a contar essas coisas?"
"Pessoas."
"Quais pessoas?"
O rapaz calou-se por um instante. Se mencionasse o professor Ayman era capaz de lhe arranjar problemas, pensou. Talvez fosse melhor recorrer a uma resposta evasiva.
"Os meus amigos."
Saad apontou o dedo ao seu pupilo.
"Então vais dizer aos teus amigos que, ao perseguir os cristãos, eles próprios são os kafirun." Ahmed levantou os olhos admirados. "O que quer dizer com isso, xeque?" O mestre indicou o Alcorão que tinha nas mãos. "Em que sura vais?" "Perdão?"
"Até que sura já decoraste?" O
pupilo sorriu com orgulho. "Já
cheguei à sura 25, xeque."
"Nestes cinco anos já decoraste todo o Alcorão até à sura 25?" "Sim."
"Então recita-me a sura 5. Já."
"A sura 5, xeque?", surpreendeu-se Ahmed de novo, arregalando os olhos. "Mas é enorme..."
"Recita-me o versículo 82 da sura 5."
O rapaz fechou os olhos e fez um esforço de memória. Passou em revista mental a sura 5 e chegou enfim ao versículo pedido.
"«Nos judeus e nos que adoram ídolos encontrarás a mais violenta inimizade para com os que crêem»", recitou. "«Nos que dizem: 'Nós somos cristãos', encontrarás os mais próximos, em amor, para os que crêem»."
"Vês?", perguntou o xeque. "Vês? Entre os cristãos encontrarás os mais próximos dos crentes! E o que diz Alá no Alcorão! E a própria voz de Alá a dizê-lo!"
"Mas, xeque, a mesma sura 5 revela outras coisas também", argumentou Ahmed, combativo. "No versículo 54, Alá diz o seguinte: «O vós que credes!
Não tomeis a judeus e cristãos por confidentes: uns são amigos dos outros. Aquele de entre vós que os tome por confidentes será um deles»."
"É verdade", reconheceu Saad. "Mas lembra-te do que Alá diz no versículo 256 da sura 2: «Não há constrangimento na religião!» Ou seja, não podemos obrigar os cristãos a converterem-se."
"O problema, xeque, é que na mesmíssima sura 2, versículo 191, Alá diz outra coisa: «Se vos combatem, matai-os: essa é a recompensa dos incrédulos.» E, dois versículos adiante, Alá diz:
«Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus. Se eles se converterem, não haverá mais hostilidade.»"
O xeque endireitou-se no seu lugar. Diabo do rapaz, pensou, para além de ser precoce tem mesmo a primeira parte do Alcorão na ponta da língua! Onde quer que ele estivesse a beber toda esta informação, a verdade é que trazia sempre resposta pronta.
"Ouve, Ahmed, é um facto que tudo isso está escrito no Alcorão e corresponde à vontade de Alá", afirmou, falando devagar como se pesasse as palavras. "Mas devo lembrar-te que Deus reconhece os judeus e os cristãos, a quem chama os Adeptos do Livro. E, no versículo 109 da sura 2, Alá diz: «Muitos Adeptos do Livro, por inveja, queriam voltar a fa-zer-vos
incrédulos depois de haverdes
professado a vossa fé, depois de a verdade se lhes mostrar claramente. Perdoai e contemporizai.»"
Vês? "«Perdoai e contemporizai»." Mesmo que Alá censure os judeus e os cristãos, Ele apela aos crentes para que perdoem os Adeptos do Livro.
Temos, pois, de perdoar e contemporizar. E uma ordem directa de Alá."
"Mas, xeque, o senhor não recitou todo esse versículo", corrigiu o pupilo. "Há uma parte que omitiu."
"O quê? Que parte omiti eu?"
"No versículo 109, Alá diz tudo o que o senhor disse que Ele disse", admitiu. "Mas a frase completa do «perdoai e contemporizai» é: «Perdoai e contemporizai até que Deus venha com a Sua Ordem.» Ou seja, os crentes só devem perdoar e contemporizar até Alá aparecer com a Sua Ordem.
Isto implica que, uma vez a Ordem aparecida, já não se deve perdoar nem contemporizar! Deve-se fazer outra coisa. Deve--se: «Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus», como vem na mesma sura, alguns versículos adiante."
O xeque Saad suspirou, exasperado.
"Ouve, Ahmed", disse. "O Livro Sagrado é complexo e por vezes contraditório. Deves acima de..."
"Complexo? Contraditório?", admirou-se o pupilo, ganhando atrevimento. Indicou o Alcorão com o olhar. "Xeque, o que está escrito no Livro Sagrado é simples e directo. Alá diz na sura 2, versículo 193:
«Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus». Isto é muito claro!
Isto é..."
"Cala-te!", cortou Saad em tom subitamente agastado, o rosto enrubescendo como uma malagueta, a voz elevando-se pela primeira vez nos três anos em que instruía Ahmed. "Não deves falar assim! Nenhum bom muçulmano deve falar assim!
Tens apenas doze anos, és ainda uma criança! Não me venhas ensinar o que diz ou não diz Alá no Alcorão! Eu sei muito bem o que está dito por Deus no Livro Sagrado! Eu estudei o Alcorão toda a minha vida! O islão é Alá, a quem chamamos Ar-Rabman e Ar-Rahim, o Beneficente e o Misericordioso! O islão é Maomé, que disse que era irmão de todo o homem piedoso! O islão é Saladino, que poupou os cristãos quando libertou Al-Quds! O islão são os cento e catorze versículos do Alcorão que falam sobre o amor, a paz e o perdão!"
Ahmed encolheu-se no seu lugar, intimidado com aquela fúria repentina.
"Alá aconselha-nos no Alcorão a sermos generosos com os nossos pais, com a nossa família, com os pobres, com os viajantes", continuou Saad no mesmo tom, quase atropelando as palavras. "Não devemos ser perdulários, não devemos enganar os outros. A ostentação e o orgulho são grandes defeitos, a honestidade é uma virtude. E isso o que Alá diz no Alcorão!" No empolgamento das palavras, ergueu o dedo justiceiro. "O islão é o que o Misericordioso enuncia na sura 2, versículo 177: «Recto é quem crê em Deus, no Ultimo Dia, nos anjos, no Livro e nos Profetas; quem dá dinheiro por seu amor aos parentes, órfãs, pobres, ao viajante, aos mendigos e para o resgate de escravos. Os que fazem a oração e dão esmolas, os que cumprem os pactos quando os têm, os perseverantes na adversidade, na desgraça e no momento da calamidade; esses são os verdadeiros e esses são os tementes.»" Fixou no pupilo os olhos ainda furiosos. "E, acima de tudo, não te esqueças de que o islão é pacífico, ouviste? Pa-cí-fi-co! «Ó vós que credes!», ordena Alá na sura 4, versículo 29: