«Não vos mateis!» Matar é, pois, proibido! Está sentenciado por Alá no Alcorão! «Não vos mateis!»"
Fez-se silêncio na salinha da mesquita; apenas se ouvia a respiração ofegante do xeque e o eterno zunir irritante das moscas. Saad passou a mão pela cara, num esforço para se acalmar e retomar o dominio emocional de si próprio, e o pupilo baixou os olhos, embaraçado com o próprio embaraço do seu mestre.
Já mais sereno, o clérigo afinou a voz.
"Através do Alcorão, Alá reconheceu os profetas dos judeus e dos cristãos como Seus mensageiros", disse, a voz retomando a tranquilidade habitual.
"Deus diz na sura 3, versículo 3: «Deus te revelou, ó Profeta, o Livro com a verdade, testemunhando os que o precederam: a Tora e o Evangelho.» E Alá acrescenta na sura 4, versículo 163: «Inspirámos--te como inspirámos a Noé e aos Profetas que vieram depois dele, pois inspirámos a Abraão, Ismael, Isaac, Jacob, às doze tribos, a Jesus, a Job, a Jonas, a Aarão, a Salomão e a David, a quem demos os salmos.» O problema é que as mensagens originais destes profetas da Tora e do Evangelho foram deturpadas por intermediários, como os rabinos e os padres. Daí a necessidade que Alá teve de fazer a revelação por uma última vez, desta feita a Maomé, e ordenar que as Suas palavras ficassem registadas no Livro Sagrado para não mais serem deturpadas.
Quando o Alcorão fala, é pois Alá que fala. E no Alcorão está o reconhecimento de que Jesus era um Profeta verdadeiro. Ou não leste isso?"
"Sim, xeque. Li."
"A mensagem de Alá é uma mensagem de bondade, de piedade e de tolerância. No último sermão que fez antes de morrer, Maomé disse: «Não existe superioridade de um árabe em relação a um não árabe, nem de um não árabe sobre um árabe, nem de um branco sobre um negro, nem de um negro sobre um branco, excepto a superioridade que se obtém através da consciência de Deus»." Fez uma pausa para deixar esta frase assentar. "Está claro isto?"
"Sim, xeque", assentiu Ahmed de novo.
O pupilo hesitou, como se quisesse acrescentar mais alguma coisa, mas, preocupado com a inesperada irascibilidade do mestre, conteve-se.
"O que é, rapaz?", perguntou Saad, que havia notado a hesitação.
"Nada, xeque."
*
"Diz."
O olhar de Ahmed pousou no volume que o mestre ainda acariciava.
"Quando Maomé disse que não havia superioridade de raças, estava a dizer o que vem no Alcorão."
"Claro."
"Mas, xeque, nessa mesma frase o Profeta torna claro que, não havendo superioridade de raças, há superioridade no islão. O que o apóstolo de Alá diz é: não há superioridade entre os homens «excepto a superioridade que se obtém através da consciência de Deus». Ou seja, os muçulmanos são superiores.
Alá diz na sura 3, versículo 19: «A religião, para Deus, é o islão.»"
"Claro, o islão é a submissão a Deus. Quem se submete a Deus é superior. Mas lembra-te de que os Adeptos do Livro também têm consciência de Deus..."
"É uma consciência deturpada pelos rabinos e pelos padres, xeque. Não é a verdadeira consciência. Eles só têm conhecimento de Deus através de intermediários, não de forma directa, como nós."
"E verdade", reconheceu o mestre. "E então?"
"Isso mostra que não somos todos iguais, xeque."
"Admito que não", reconheceu Saad. "Mas lembra-te que Alá diz na sura 2, versículo 62: «Na verdade, os que crêem, os que praticam o judaísmo, os cristãos e os sabeus - os que crêem em Deus e no Último Dia e praticam o bem - terão a recompensa junto do seu Senhor. Para eles não há temor.» A mesma mensagem é repetida em dois outros versículos. Como vês, as pessoas boas dos Adeptos do Livro serão recompensadas por Alá. Isto mostra tolerância para com as outras religiões."
"E, no entanto, na sura 5, versículo 51, Alá torna claro que um crente não pode ser amigo de um judeu ou de um cristão..." "É verdade."
Ahmed voltou a hesitar, na dúvida sobre se deveria expor o que tinha em mente, mas desta feita venceu a hesitação.
"E há outra coisa, mas peço-lhe que não se zangue com aquilo que vou dizer ...."
Saad sorriu, benigno.
"Fica descansado."
"O senhor disse há pouco que Alá proibiu no Alcorão que se matasse." "Sim."
"Mas se assim é, xeque, por que razão a sura 2, versículo 193, diz: «Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus»?
Se assim é, por que razão o versículo 191 da mesma sura diz: «Se vos combatem, matai--os: essa é a recompensa dos incrédulos.» Se assim é, por que razão Alá ordena no Alcorão a morte dos que cometem certos crimes? Afinal, matar é ou não proibido?"
O mestre ficou momentaneamente sem saber o que dizer.
"Bem... quer dizer, é proibido, mas... também é permitido... enfim... é permitido, mas só em certas circunstâncias, claro."
"E isso, xeque. E permitido em certas circunstâncias. Mais do que isso, a morte é ordenada, como acontece no caso dos crentes envolvidos em assassínio, apostasia ou relações se-xuais ilegais ou no caso dos kafirun. Lembre-se que a sura 4,
versículo 29, se dirige aos crentes, não aos kafirun.
«Ó vós
que credes», diz Alá: «Não vos mateis!" Ou seja, não mateis
outros crentes, não mateis outros muçulmanos, com excepção
dos criminosos. Mas Alá não proíbe a matança de kafirun.
Aliás, ainda nem sequer falámos sobre o que vem na sura 9,
versículo 5, onde Alá..." ,. #
A voz de Ahmed morreu ao ver o mestre empalidecer no instante em que mencionou este versículo. Mas o xeque permaneceu calado e o pupilo retomou a voz e concluiu a frase.
"... na sura 9, versículo 5, Alá diz: «Matai os idólatras onde os encontrardes. Apanhai-os!
Preparai-lhes todas as espécies de emboscadas!»"
Os músculos dos maxilares do mestre contraíram-se, denunciando o esforço que ele fazia para se dominar.
"Isso é para os idólatras, não é para os Adeptos do Livro", argumentou, a voz fria e tensa.
"São todos idólatras, xeque! Os kafirun cristãos, não rezam eles a estátuas que põem nas igrejas?
Não adoram eles santos e a mãe de Jesus? Não dizem eles que Jesus é o filho de Deus? Isso é idolatria! Está no Alcorão: «Não há outro Deus que não seja Deus!» O senhor mesmo o disse nas inúmeras lições que tivemos ao longo destes anos! Só há um Deus! Ninguém reza a Maomé! Ninguém reza à mãe de Maomé! Ninguém reza a Abu Bakr ou a qualquer outro califa! Um verdadeiro crente só reza a Deus, unicamente a Deus! Mas os kafirun cristãos rezam a Jesus, rezam à mãe dele, rezam ao Espírito Santo, rezam ao santo este e ao santo aquele, rezam ao papa, rezam diante de estátuas... rezam a tudo!
Acham até que Jesus é uma espécie de Deus... Isso é idolatria! E Alá diz: «Matai os idólatras onde os encontrardes.»"
"Está bem, mas essa ordem foi dada no contexto de urna batalha específica, não pode ser lida como ordem geral."
"Só não é lida como ordem geral por quem não a quer ler assim, xeque", devolveu o pupilo com um esgar sobranceiro. "É evidente que todos os versículos do Alcorão têm um contexto. Mas não é Alá As-Samad, o Eterno? Então as Suas ordens, embora sempre proferidas num contexto, também são eternas. Quando Alá, na Sua infinita sabedoria, revelou ao Profeta o versículo a ordenar que certas acusações envolvessem um mínimo de quatro testemunhas, essa ordem tem ou não tem um contexto?"