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"Qual é que havia de ser? Sadat, claro!"

"Dispararam sobre Sadat? Porquê?"

"Sei lá, é isso que estamos a discutir. Eu acho que são rivalidades entre eles, o poder cria muitos inimigos. Mas o teu irmão pensa que foram os sionistas."

Ahmed apontou para o televisor.

"O que dizem na televisão?"

"Nada", devolveu o irmão mais velho com um encolher de ombros. "Dizem que o presidente foi para o hospital."

"Mais nada?"

"E que foi decretado o estado de emergência."

Depressa se tornou evidente que da televisão não viriam

mais notícias. Mas toda a família mergulhara num estado de

excitação febril e ninguém conseguia permanecer fechado em

casa.

Apesar do calor que fervia lá fora, saíram todos para a rua e deram com o nariz nos vizinhos; toda a gente sentia a mesma coisa, ninguém era capaz de conter a agitação nervosa que se apossara de si. As conversas centravam-se obsessivamente no mesmo assunto: o que acontecera e quem o fizera. Uns diziam que era um golpe de estado dos generais, outros que aquilo era tudo inventado, os primeiros indignavam-se com os segundos, havia quem insistisse nos Israelitas e dissesse que o acordo de paz de Camp David havia sido uma emboscada; o facto é que a algazarra se transferira para a rua.

A mãe de Ahmed, que tinha ido inspeccionar um tacho que deixara ao lume, apareceu de repente à porta de casa, esbaforida.

"Depressa! Depressa! Venham ver!"

Foram todos a correr para casa, família e vizinhos, e as atenções fixaram-se de novo no ecrã. O homem engravatado desaparecera; em seu lugar surgiram imagens do Alcorão, com uma voz a recitar o Livro Sagrado. Ficaram paralisados, tentando digerir o significado daquilo. Por que motivo a televisão recitava o Alcorão?

"O rádio!", exclamou o senhor Barakah.

O pai de Ahmed foi apressadamente ao quarto buscar um pequeno receptor de ondas curtas. Voltou para a sala, pousou o aparelho sobre a mesa, ligou-o e sintonizou a estação que habitualmente ouvia. Uma voz melódica e melancólica irrompeu do rádio. Estava a dar um qualquer programa de música e os sons flutuavam como ondas, iam e vinham, tornavam-se mais límpidos num momento e logo a seguir mais distantes, pelo meio ouviam-se uns assobios, como era característico das recepções de onda curta.

"Que horas são?", quis saber o irmão mais velho de Ahmed.

O pai consultou o relógio. Faltavam quatro minutos para a hora certa.

"O noticiário é daqui a quatro minutos."

Aguardaram em volta do aparelho, a impaciência a rumi-nar-lhes no estômago. No televisor continuava a recitação do Alcorão; Ahmed identificou os versículos da sura 2. O programa musical da rádio, que até ali lhes parecera infindável, chegou entretanto ao fim e uma voz pausada e distante encheu a sala.

"Aqui Londres. Esta é a BBC. Estão a ouvir os serviços em língua árabe."

Seguiu-se uma pausa cheia de estática e os toques metálicos e imponentes do Big Ben romperam devagar o silêncio. A voz voltou.

"Morreu o presidente Anwar al-Sadat. O chefe de estado egípcio foi vitimado hoje por um atentado no Cairo. O ataque ainda não foi reivindicado, mas..."

Só na semana seguinte recomeçaram as aulas. A lei marcial decretada pelo vice-presidente Mubarak obrigou Ahmed e toda a família a ficarem em casa durante alguns dias, como aconteceu com a generalidade dos Egípcios. Reinava na altura a maior das confusões sobre os reais motivos do atentado, mas, dois dias depois, a televisão deu a conhecer a identidade dos assassinos.

"Quem são esses homens da Al-Jama'a?", perguntou Ahmed ao pai, ao almoço, depois de ouvirem o noticiário.

"Al-Jama'a al-Islamiyya", corrigiu o senhor Barakah, dando o nome completo do movimento. "São radicais."

"O que é isso?"

"O filho, tens cada pergunta!", retorquiu o pai com impaciência. "São muçulmanos que querem a aplicação da sharia."

"Uns malucos!", acrescentou a mãe, inclinada sobre a travessa para cortar uma fatia de carneiro. "Uns doidos!"

"Cala-te, mulher! Que sabes tu disso?"

"Sei que assim as coisas vão piorar..."

"Não vão nada!", sentenciou o marido, estendendo o prato na direcção da mulher para que ela o servisse de carne. "O Mubarak vai ter mão firme para lidar com esta gente, vais ver."

"E se não tiver?"

"Se não tiver, olha... isto pode realmente acabar mal."

"Matar o presidente!", insistiu a mãe, olhando de relance para cima como se consultasse Alá. "Onde já se viu isto, meu Deus? Onde já se viu isto? Queira o Misericordioso que tudo se componha! Inch'Allah!"

"Devem pensar que estamos na América!", exclamou o pai, preparando-se para meter o primeiro pedaço de carneiro na boca. "Lá é que se matam presidentes..."

"O Sadat não devia ter feito a paz com os sionistas", opinou o filho mais velho, que até ali permanecera calado. "Isso foi mal feito!"

"Lá isso é verdade", assentiu o senhor Barakah, já a mastigar. "O presidente devia ter tido mais cuidado. Foi um desrespeito para com a umma e para com os mártires das guerras contra os sionistas.

Isso é verdade."

"O Sadat estava a pedi-las...", insistiu o mais velho.

"Sabem o que disse um dos homens que disparou sobre ele? «Matei o faraó!»"

O pai riu-se.

"Faraó? E boa, essa!"

A conversa prosseguia animada, mas Ahmed já não prestava atenção. Tinha a mente mergulhada num turbilhão, tão pensativo ficara quando o pai lhe explicara o que eram radicais. São muçulmanos que querem a aplicação da sharia? E qual o mal disso? A sharia é a lei de Deus e está ordenada por Alá no Livro Sagrado. Se a Al-Jama'a quer a aplicação da lei de Deus, não será isso porventura justo? A cabeça de Ahmed enchia-se de interrogações e perplexidade, mas, considerando o clima de medo que se instalara após a morte do presidente e a purga entretanto iniciada pelo vice-presidente, sabia que aquele era o pior momento possível para começar a fazer perguntas em voz alta.

O melhor era permanecer calado.

A madrassa reabriu portas na semana seguinte e Ahmed compareceu às aulas logo no primeiro dia.

Tinha a noção de que não conseguiria calar-se indefinidamente; precisava de saber. A mente fervilhava-lhe ainda de dúvidas e necessitava de respostas urgentes. Talvez as encontrasse na aula de Religião, pensou, e foi por isso com ansiedade que aguardou a hora da lição.

Quando

o

professor

Ayman

apareceu,

descobriu-lhe no rosto uma expressão estranha; era como se misturasse alegria com apreensão; num momento sorria, no seguinte quase espreitava por cima do ombro. Havia de facto um clima de medo que perpassava por toda a gente e pelos vistos o professor não era excepção. A tensão tornou-se palpável, mas Ahmed acreditava que a aula de Religião lhe mostraria caminhos.

Não foi isso, porém, o que aconteceu. A aula revelou-se nesse dia uma enorme decepção; em vez de falar do que lhe interessava, o professor Ayman limitou-se a pôr os alunos a recitar o Alcorão em coro.

A recitação do Livro Sagrado era uma coisa mufto belã,

repreendeu-se

de

imediato

Ahmed,

subitamente mortificado com o seu desapontamento.

Como podia ele estar decepcionado por recitar o Alcorão? Aquelas eram as palavras de Alá As-Samad, o Eterno, e qualquer oportunidade para as proferir constituía uma grande honra e era assim que tinha de pensar sempre!

Momentos após a lição terminar e depois de toda a gente sair da sala, deu consigo a caminhar no encalço do professor. Não o planeara, mas o facto é que o estava a seguir.