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"Os ahadith relatam histórias de Maomé, que a paz esteja com ele, estabelecendo desse modo a sua sunnah, ou exemplo. Os episódios da vida do Profeta, que a paz esteja com ele, servem assim de fonte legal, só suplantados pelo Santo Alcorão." Alterou o tom da voz, como se fizesse um aparte. "Aliás, muitos versículos do Livro Sagrado só se entendem se conhecermos as circunstâncias em que apareceram. Essas circunstâncias estão relatadas justamente nos ahadith."

"Mas, senhor professor, como sabemos se esses episódios narrados nos ahadith ocorreram mesmo? O

meu mullah disse-me que há muitos ahadith falsificados..."

"E disse bem", confirmou Ayman. "Há imensos relatos fraudulentos de episódios da vida de Maomé, que a paz esteja com ele. Foi por isso que, duzentos anos depois da morte do Profeta, que a paz esteja com ele, alguns estudiosos se puseram a coleccionar ahadith e a verificar a forma como foram transmitidos ao longo do tempo, de modo a garantir a sua fiabilidade. A colecção mais importante é a do imã Al-Bakhari, que analisou trezentos mil ahadith e determinou que dois mil eram autênticos, uma vez que conseguiu seguir-lhes a pista até ao próprio mensageiro de Alá. Esses ahadith estão publicados numa colecção chamada Sahih Bukhari. Também o imã Muslim fez uma colecção muito credível, conhecida por Sahih Muslim.'"

"Portanto, qualquer hadith que esteja nessas colecções é considerado verdadeiro?"

"Sem dúvida", assegurou o professor. "Mas deixa-me voltar à questão de como se formam as leis islâmicas, porque isso é importante. Imagina agora que era preciso pronunciar uma decisão legal... uma fatwa. O que se fazia? Se o Santo Alcorão era omisso quanto ao assunto em apreço, ia-se ter com Aisha e ela lembrava-se de uma sunnah, um exemplo da vida de Maomé, que a paz esteja com ele, que se adaptava à circunstância em questão. Mas imagina que não lhe ocorria nenhum episódio, não encontrava nenhum hadith adequado. O que fazia ela? Dizia para a pessoa ir falar com Abu Obayda, por exemplo.

Talvez ele se lembrasse de algum hadith apropriado.

Se Obayda não se lembrasse, remetia a pessoa para Abu Bakr."

"E se o califa também não tivesse resposta?"

"Bom, nesse caso reunia um conselho e apresentava a questão, perguntando se alguém se lembrava de alguma coisa na vida de Maomé, que a paz esteja com ele, que resolvesse o problema. Se ninguém se lembrasse, então o conselho pronunciava uma nova decisão, mas sempre inspirada no espírito do Santo Alcorão ou da sunnah." "Isso não é uma ijma'ah?"

"Sim, essas decisões são as ijma'ah. Portanto, a fonte superior do islão é o Santo Alcorão. Quando o Livro Sagrado não tem resposta, vamos aos ahadith que contam episódios da vida do Profeta, que a paz esteja com ele, e extraímos uma sunnah, um exemplo apropriado ao problema. Quando os ahadith não têm resposta, os sábios emitem uma ijma'ah inspirada no Santo Alcorão ou na sunnah."

"Mas isso era no tempo em que ainda viviam pessoas que conheceram o Profeta. Como se fazem hoje as ijma'ah?"

"Da mesma maneira, com um conselho de sábios", retorquiu Ayman. "Grande parte das ijma'ah é actualmente pronunciada pelo Conselho Islâmico para a Pesquisa, que se reúne aqui no Cairo, na Universidade Al-Azhar."

"A nossa universidade?"

"Sim, a nossa. Al-Azhar é a mais prestigiada universidade do islão, não sabias?"

"Então não havia de saber?", exclamou Ahmed, subitamente orgulhoso. "E nós pertencemos a ela..."

"A nossa madrassa pertence a Al-Azhar, sim."

O aluno manteve por momentos um sorriso desenhado no rosto, mas logo uma interrogação o assaltou.

"Tenho uma dúvida, senhor professor: como podemos ter a certeza de que as decisões desses sábios são todas acertadas?"

"Pois, esse é um problema", reconheceu o professor Ayman, o olhar de repente toldado. "O

Conselho Islâmico para a Pesquisa está sob influência do governo e as suas ijma'ah tendem a ser feitas para agradar ao governo, não a Alá." Abanou a cabeça. "Isso não pode ser. Eu acho que a umma não pode confiar nestes sábios que só dizem o que é conveniente, não o que é verdadeiro. Há outros sábios cujas ijma'ah são mais fiéis ao Santo Alcorão ou à sunnah." "Quem?"

"O grande mufti da Arábia Saudita, por exemplo.

Ou a Escola de Lei Islâmica do Qatar."

Fez-se silêncio. O eterno zunir das moscas, ;até aí» mero ruído de fundo, tornou-se dominante, acompanhado pelo som abafado de vozes e passos no corredor, para além da porta trancada.

Ahmed remexeu-se no seu lugar.

"Senhor professor, ainda não percebi bem.

Permite-me que lhe faça uma pergunta?" "Claro."

O rapaz calou-se um instante, considerando a melhor maneira de reformular a questão.

"Não entendo o que tem isto a ver com o problema dos kafirun", disse, retomando a questão que ali o levara. "O mullah da minha mesquita diz que os cristãos são os mais próximos de nós e que devemos perdoar e contemporizar. Isso está de facto dito por Alá no Alcorão. Mas, ao mesmo tempo, Alá diz outras coisas no Livro Sagrado. Diz que não podemos ser amigos dos kafirun judeus e cristãos. Diz que devemos matar os kafirun até que a perseguição pare e eles se convertam e deixem de ser kafirun.

Diz que devemos preparar todas as espécies de emboscadas aos idólatras e matá-los. Afinal onde está a verdade?"

"Está em tudo o que te disse."

O aluno sacudiu a cabeça, inconformado.

"Desculpe, mas continuo a não entender. O que têm estas coisas de que o senhor professor falou a ver com o problema dos kafirun?"

"Têm tudo. Tudo. O Santo Alcorão e os ahadith contêm uma resposta clara para o problema dos kafirun." "Qual resposta? Qual?"

O professor acariciou distraidamente o queixo, passando os dedos devagar por entre os pelos negros e levemente encaracolados da barba farfalhuda.

"Já ouviste falar na nasikh?"

"Sim, claro. O meu mullab mencionou isso numa lição, aí há um ano. Porquê?" "O que é a nasikh?"

"Bem... é a revelação progressiva do Alcorão."

"Sim, mas o que quer isso dizer?"

Ahmed mordeu o lábio. O xeque Saad já tinha de facto abordado aquele assunto, mas fora uma coisa de tal modo breve que o significado do conceito não ficara firme na sua mente.

"Não sei."

O professor sorriu.

"Nasikh é a chave para as aparentes contradições do Alcorão. Na verdade não há contradições nenhumas. O Livro Sagrado é perfeito. Nasikh significa que Alá decidiu, na Sua imensa sabedoria, revelar progressivamente o Santo Alcorão. Podia ter revelado tudo de uma vez, mas Deus, que tudo sabe e tudo planeia, optou por fazê-lo por fases, através do sistema de revelação progressiva, ou nasikh. Isso quer dizer que as novas revelações cancelam as anteriores. Compreendeste?"

O rapaz fez um ar intrigado.

"Hmm... sim."

Pelo tom hesitante da resposta, o professor Ayman percebeu que aquele "sim" significava na realidade um "não" encapotado.

"Já vi que não compreendeste nada", observou.

"Mas eu explico-te melhor. Antes de Meca, para que direcção o Santo Alcorão mandava os crentes rezarem?"

"Al-Quds."

"Exactamente! Primeiro foi mandado aos crentes que rezassem na direcção de Al-Quds e depois na direcção de Meca. Parece haver aqui uma contradição. Afinal, qual-a ordeTn que é válida?"

"Ora, a segunda."

"Isso é nasikh, ou ab-rogação. Através do Santo Alcorão, Alá mandou primeiro rezar na direcção de Al-Quds e depois na de Meca. Quando há contradição aparente, aplica-se o princípio da revelação progressiva. As novas revelações cancelam as anteriores. A ordem de rezar na direcção de Meca cancelou a anterior. O mesmo acontece com o álcool, por exemplo. Primeiro o álcool era permitido em todas as circunstâncias, depois passou a ser proibido só durante a oração e mais tarde foi proibido em qualquer circunstância. Qual a ordem que é válida?"