"A última, claro."
"Nasikb! As revelações anteriores são canceladas pelas novas. É isso a ab-rogação. Podemos continuar a ler os versículos cancelados no Santo Alcorão, claro, mas já não são válidos. Compreendeste?"
"Sim", retorquiu o aluno com a convicção de quem finalmente entendera.
"Agora é preciso que percebas mais outra coisa", disse. "A revelação progressiva divide-se em dois períodos fundamentais: o de Meca e o de Medina. O
primeiro período é o de Meca, altura em que o Profeta, que a paz esteja com ele, nunca falou em guerras e defendeu a tolerância e o perdão para com os Adeptos do Livro. Neste primeiro período de treze anos, ele limitou-se a pregar e a rezar e a meditar. O único conflito que teve foi com a adoração dos ídolos. Mas depois o Profeta, que a paz esteja com ele, fugiu para Medina e tudo mudou.
Neste segundo período ele quase só falou em guerras e passou a pregar o islão com a espada na mão. Comandou pessoalmente os crentes em vinte e seis batalhas, ordenou a morte de pessoas, regozijou-se quando lhe mostraram as cabeças decapitadas dos seus inimigos e combateu os Adeptos do Livro. Agora repara: quando começou a era islâmica?" "Foi com a Hégira."
"Que foi justamente a fuga do Profeta, que a paz esteja com ele, para Medina. Isso quer dizer que a fase de Medina é que é a do verdadeiro islão, não a fase de Meca. Se fosse a de Meca, a era islâmica teria começado com a primeira revelação. Mas não. A era islâmica só começou quando Maomé, que a paz esteja com ele, foi para Medina; só se iniciou quando o Enviado de Deus, que a paz esteja com ele, come-
çou a pregar a guerra e a intolerância para com os Adeptos do Livro. Percebeste?"
"Sim."
"E eu pergunto-te agora: em que fase da revelação progressiva do islão está dito por Alá no Santo Alcorão que, em relação aos judeus e aos cristãos, devemos perdoar e contemporizar?"
"Na fase de Meca."
"E em que fase está dito que devemos emboscar e matar os idólatras?"
"Na de Medina, claro."
"À luz do princípio de nasikh, o que se deve concluir quanto a essa aparente contradição?"
"A fase de Medina é posterior à fase de Meca", constatou Ahmed. "Logo, a revelação que está na sura 9 cancelou a da
sura 2. É essa a ordem de Alá que permanece válida.
A que se encontra na sura 9, versículo 5."
Ayman abriu os braços, fechou os olhos, levantou o rosto e, com a expressão mística de um asceta em transe, entoou o versículo que a revelação progressiva autenticara.
"«Matai os idólatras onde os encontrardes.
Apanhai-os! Preparai-lhes todas as espécies de emboscadas!»'^. »
XIII
O sino da basílica tocou compassadamente, como se marcasse o ritmo de Veneza, o som a reverberar com melancolia pela enorme praça, pontuando o farfalhar surdo das revoadas de pombos que saltitavam por entre a multidão.
"Já são sete horas", constatou Rebecca, lançando um olhar sobre a discreta Torre dell'Orologio situada em frente. "Quer ir tomar qualquer coisa?"
"Sim, porque não?", concordou Tomás. "Vamos comer um gelado?"
"Está bem. Mas depois damos um salto ao Harry's, pode ser?"
"Combinado."
Atravessaram a Piazzeta e passaram entre o Campanile e a basílica. As cúpulas brancas e arredondadas
do
santuário
reflectiam
os
derradeiros raios de Sol e o lusco-fusco semeava sombras nas colunas sujas das velhas galerias que cercavam a Piazza San Marco. Toda a praça se abria num bulício nervo
so; era um verdadeiro mar de pessoas, com os turistas a encherem as esplanadas e a fotografarem-se diante dos edifícios, ignorando os pombos que esvoaçavam de ponto em ponto, à cata das migalhas que lhes eram lançadas às mãos--cheias pelos venezianos.
Tomás e Rebecca tomaram o caminho de uma das esplanadas ao lado da Torre dell'Orologio, onde homens e#n elegantes smokings afinavam violinos, violoncelos e um piano para o concerto ao ar livre do início da noite. Contornaram a esplanada e, nas galerias veccbie, detiveram-se diante da pequena montra de gelados do Gran Caffé Lavena.
"Um chocolate ice cream", pediu ela.
Decidido a impressioná-la, Tomás optou por exibir o seu melhor italiano. Aproximou-se do balcão de estilo antigo e, espreitando a reacção de Rebecca no reflexo dos espelhos oxidados pelo tempo, lançou o pedido ao empregado.
"Per me, uno gelato di fragola, per favore."
A americana lançou-lhe um olhar surpreendido.
"Gee, não sabia que você falava italiano!"
"Oh, falo muitas línguas." Piscou-lhe o olho verde e sorriu com malícia. "Na verdade, adoro exercitar línguas!"
Atenta ao duplo sentido da graçola, Rebecca não deu parte de fraca e soltou uma gargalhada.
"Reserve a língua para o sorvete."
Com os gelados nas mãos, abandonaram o Lavena e atravessaram a Piazza San Marco em direcção à estreita passagem aberta no vértice entre o Museu Correr e as longas arcadas da Procuratie Nuove. Lá atrás, a orquestra da esplanada começou a tocar os primeiros acordes de Strangers in the Night, enchendo o ar de uma melancolia vibrante.
"Então o que faz uma mulher bonita como você na NEST?", perguntou Tomás entre duas lambidelas no gelado de morango.
"Gosto de aventura e desafio", devolveu ela, uma mão com o gelado, a outra a segurar a pasta negra de executivo. "Quando acabei o curso de Engenharia fui recrutada para a CIA e acabei sob as ordens de mister Bellamy no Directorate of Science and Technology. Depois do 11 de Setembro ocorreu um grande susto com o incidente Dragonfire, um alerta nuclear em Nova Iorque que..."
"Eu sei, mister Bellamy contou-me."
"Ah, bom. Pois, no rescaldo desses atentados percebeu-se que os terroristas muçulmanos estavam dispostos a tudo. Mesmo ao impensável. O meu governo chegou à conclusão de que um ataque nuclear terrorista se tinha tornado inevitável e decidiu reforçar a NEST. Mister Bellamy foi enviado para lá e convidou-me para me juntar à equipa. Ao fim de algum tempo, no entanto, concluiu-se que a ameaça não podia ser apenas enfrentada na América e era necessário estender a nossa área operacional ao resto do planeta. Por causa disso, primeiro fui enviada para o Afeganistão e depois para chefiar o nosso centro operacional no Sul da Europa, em Madrid."
"Porquê Madrid?"
Rebecca franziu o sobrolho.
"Você é historiador, viveu o último ano no Cairo a estudar o islão e ainda pergunta «porquê Madrid»?"
"Está a referir-se ao Al-Andalus?" "Claro."
Tomás ficou a matutar na escolha de Madrid para a sede daquele centro operacional da NEST.
"Faz sentido", reconheceu. "Os muçulmanos ocuparam grande parte da Península Ibérica entre 711 e 1492. Quando eu estava na Universidade de Al-Azhar, no Cairo, ouvi alguns fundamentalistas falarem nostálgicamente no Al-Andalus e na necessidade de o islão recuperar a Península Ibérica." Encolheu os ombros. "Mas aquilo pareceu-me um objectivo a longo prazo."
"Está enganado."
O português olhou para a americana, que trincava já a bolacha do cone do gelado.
"Que quer dizer com isso? Acha que eles têm mesmo desígnios imediatos sobre a Península Ibérica?" *