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Rebecca parou de mastigar por um instante e olhou-o de soslaio.

"Você está a brincar? Claro que sim! Osama Bin Laden escreveu, e cito de cor: «Pedimos a Alá que a umma recupere a sua honra e o seu prestígio, e erga de novo a única bandeira de Alá sobre toda a terra islâmica que nos foi roubada, da Palestina ao Al-Andalus»."

"Bin Laden escreveu isso?"

"Numa carta ao grande mufti da Arábia Saudita, em 1994." "Caramba!"

"E olhe que isto é apenas uma pequena amostra. A recuperação do Al-Andalus faz parte do discurso dos jihadistas. O braço direito de Bin Laden na Al-Qaeda, o egípcio Ayman Al-Zawahiri, declarou numa gravação difundida em 2007: «O nação muçulmana do Magrebe, zona de batalha e de jibad.

Fazer regressar o Al-Andalus ao islão é um dever da umma em geral e vossa em particular.» E também o mentor de Bin Laden, Abdullah Azzam, estabeleceu ser obrigatório fazer guerra para recuperar as terras muçulmanas do Al-Andalus. Até a revista infantil do Hamas fala do assunto!"

"A sério? O que andam os tipos do Hamas a dizer às criancinhas palestinianas?"

"Que é dever dos muçulmanos recuperar Sevilha e todo o Al-Andalus. Isto para não falar, claro, do xeque Qaeadawi, líder espiritual da Irmandade Muçulmana, que escreveu que o islão foi expulso de duas regiões da Europa, o Al-Andalus e os Balcãs e a Grécia, mas ia agora voltar. Ou do xeque Al-Hawali, que, numa carta ao presidente Bush logo a seguir ao 11 de Setembro, escreveu: «Imagine, senhor presidente, que ainda choramos por causa do Al-Andalus e nos lembramos do que Fernando e Isabel fizeram à nossa religião, cultura e honra!

Sonhamos reconquistá-lo!»"

"Bem, se for a ver, tudo isso não passa ainda de conversa..."

A americana imobilizou-se logo a seguir à esplanada do Caffé Florian, diante da estreita passagem que os conduzia para fora da Piazza San Marco.

"Conversa, Tom? Com esta gente não se brinca!

Passámos anos a achar que era tudo conversa, que os muçulmanos falavam, falavam, mas não fariam nada e... e olhe onde essa ingenuidade nos levou!"

"Mas houve alguns passos concretos dados pelos muçulmanos fundamentalistas em relação ao Al-Andalus?"

Recomeçaram a andar e saíram da praça, virando à esquerda na direcção do cais dos vaporetti.

"Os atentados de Madrid, em Março de 2004."

"Está bem, mas isso esteve relacionado com o apoio espanhol à invasão do Iraque."

"Não, Tom. Os atentados de Madrid estiveram relacionados com os desígnios muçulmanos sobre o Al-Andalus. O apoio espanhol à invasão do Iraque foi apenas o pretexto. Não percebeu o que Bin Laden disse na carta ao grande mufti? Essa carta é de 1994, dez anos antes dos atentados de Madrid! E

não ouviu o que Al-Zawahiri declarou na sua gravação de 2007? Estes são os chefes da Al-Qaeda a falar!

Se eles afirmam que o Al-Andalus é para ser recuperado, pode acreditar que vão actuar em conformidade!"

"Muito bem", aceitou Tomás. "Admitamos que os atentados de Madrid estão relacionados com os desígnios islâmicos sobre a Península Ibérica. O que eu quero saber é se vocês tiveram mais alguns sinais de que os fundamentalistas tencionam agir para recuperar o Al-Andalus."

"Por acaso, tivemos."

"Quais?"

* *

"Na Argélia existe uma organização terrorista chamada Grupo Salafista para a Pregação e o Combate. Este grupo filiou--se na organização de Bin-Laden e Al-Zawahiri e mudou o seu nome para Al-Qaeda no Magrebe Islâmico. Num atentado efectuado em 2007 em Argel, esta gente declarou:

«Não descansaremos enquanto não voltarmos a ter o nosso amado Al-Andalus.» Desde então, as autoridades espanholas têm andado muito alarmadas com a actividade destes grupos. Os serviços secretos espanhóis, o CNI, detectaram a presença de um autodenominado Grupo para a Libertação do Al-Andalus na Internet. Sabe-se que mais de três mil pessoas em Espanha consultam regularmente os sites muçulmanos fundamentalistas e que quase oitenta por cento das pessoas presas nos últimos anos em Espanha por ligações ao terrorismo internacional são provenientes do Norte de África.

Isto significa que os terroristas estão a instalar células adormecidas no país. As autoridades espanholas descobriram entretanto que os muçulmanos fundamentalistas assumiram o controlo de dez por cento das mesquitas informais do país e andam a pregar em caves, garagens e locais do género. E isto não é tudo. Foram detectados muitos mudjabedin oriundos de Espanha a treinar em campos terroristas no Mali, no Níger e na Mauritânia. Também já se percebeu que uma importante parte dos mudjabedin enviados para o Iraque é oriunda de Espanha. Imagine o que eles farão com a experiência adquirida nos campos de treino do Sahel e

nos campos de batalha do Iraque quando regressarem a Espanha! Não tenha ilusões, a situação é muito preocupante!"

"Não fazia ideia de que isto já estava assim..."

"A verdade, Tom, é que a Al-Qaeda acredita que toda a terra que foi muçulmana tem de voltar a ser muçulmana. Bin Laden quer recuperar o Al-Andalus para o integrar no grande califado. O público está a ser mantido na ignorância, mas há políticos que sabem muito bem o que se passa. O antigo ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Joschka Fischer, afirmou em círculos restritos que, se Israel cair, o próximo país a ser atacado será, com toda a certeza, Espanha."

Tomás coçou a nuca.

"Pois, realmente...", suspirou. "Não há dúvida de que está montado um grande problema para Espanha." "E

para Portugal." "Como assim?"

"Tom, você anda a dormir ou quê? Já se esqueceu do que era Portugal antes de se formar como país?"

"Você está a insinuar que a Al-Qaeda... a Al-Qaeda já tem os olhos postos em Portugal?"

Pararam os dois à porta do Harry's, a alguns metros do embarcadouro dos vaporetti. As águas do Grande Canal lambiam a pedra do cais e as gôndolas negras passavam paulatinamente, como espectros cosidos à sombra do destino.

"Oiça lá, que territórios integravam afinal o Al-Andalus?"

"Bem, Espanha e... e Portugal, claro."

Rebecca abriu a porta do Harry's Bar e, antes de entrar, ainda olhou de relance para o historiador.

"Pois aí tem a sua resposta."

XIV

A caminho da aula, alguns dias depois da conversa no gabinete, Ahmed seguia pelo corredor quando sentiu alguém agarrá-lo pelo ombro e puxá-lo, forçando-o a virar-se. Levantou o rosto surpreendido e viu o vulto branco e esguio do professor Ayman inclinar-se na sua direcção, a barba negra a roçar-lhe o ombro.

"Estive a investigar o teu mullah", segredou-lhe ele ao ouvido. "É um sufi." Ayman endireitou-se e retomou a voz normal. "Afasta-te dele."

Logo que deu o conselho, o professor virou as costas e retomou o passo. O aluno ficou pregado ao chão, sem saber o que dizer, os olhos cravados na jalabiyya que se distanciava, incapaz de perceber o significado do que acabara de ouvir.

"Professor!", ainda conseguiu lançar na direcção do vulto. "Qual é o problema de ele ser sufi?"

Já à porta da sala, Ayman virou a cabeça para trás e lançou-lhe um sorriso enigmático.

"Já vais perceber."

A aula começou com as recitações habituais do Alcorão.

Vários

alunos,

incluindo

Ahmed,

esforçavam-se por memorizar todo o Livro Sagrado e eram capazes de recitar as primeiras suras sem olhar para o texto. Mas, meia hora mais tarde, o professor anunciou que o resto da lição seria dedicado à história do islamismo, o que provocou uma vibração alegre na classe; não havia quem não gostasse dos episódios grandiosos que ele narrava com inigualável perícia.