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"Olha para isto! Olha para isto! Isto é coisa que se apresente à mesa?"

"Se não gostas, vai cozinhar tu!", devolveu a mulher, ofendida pela crítica do marido.

O senhor Barakah ergueu-se de rompante.

Paf.

A estalada ecoou pela casa e os filhos, todos eles à mesa, encolheram-se nos seus lugares e mantiveram os olhos baixos.

"Isso é maneira de me falares?", gritou o senhor Barakah, fora de si. "Já não há respeito nesta casa?"

"Es um estúpido!"

Com a violência de um touro, o marido contornou a mesa e agarrou na mulher.

"Como te atreves, mulher, a faltar-me ao respeito?"

"Larga-me! Larga-me!"

"Eu já te ensino! Eu já te ensino!"

Pelo canto do olho, Ahmed viu o pai a arrastar a mãe para fora do seu campo de visão e, instantes depois, a porta do quarto deles a fechar-se e o som de estaladas e murros e a mãe a gritar. Ninguém dizia uma palavra à mesa, aquele era um assunto tabu entre os irmãos; todos viam o q«e se passava mas ninguém alguma vez falara no caso.

Ahmed sentiu ganas de se levantar e ir a correr em socorro da mãe, mas conteve-se e deixou-se ficar sentado, a cabeça baixa, o coração pesado.

"Toma, sua cabra!", gritava o pai no quarto. "Eu mato-te, ouviste? Eu mato-te!"

Sons de impacto.

"Pára! Pára!"

Era a mãe a implorar.

Para se isolar dos sons brutais que lhe chegavam do exterior, Ahmed pôs-se a recitar mentalmente o Alcorão. Num esforço de se abstrair da violência e de se convencer de que o correctivo que estava a ser aplicado à mãe era justo, escolheu os versículos relacionados com o papel da mulher, e em particular o versículo 34 da sura 4.

"«Os homens têm responsabilidade sobre as mulheres, porque Deus favoreceu a uns em relação aos outros, e porque eles gastam parte das suas riquezas em favor das mulheres»", recitou num murmúrio quase inaudível. "«As mulheres piedosas são submissas às disposições de Deus; são reservadas na ausência dos seus maridos no que Deus mandou ser reservado. Àquelas de quem temais desobediência, admoestai-as, confinai-as nos seus aposentos, castigai-as. Se vos obedecem, não procureis pretexto para as maltratar. Deus é altíssimo, grandioso»."

A recitação de cor só terminou quando sentiu o pai sentar--se no seu lugar para retomar o almoço. Vinha a transpirar e com a respiração arfante. Logo que o senhor Barakah cortou a kofta e meteu metade do pastel à boca, os filhos seguiram--lhe o exemplo sem pronunciar uma única palavra. Ouviam a mãe gemer do quarto, onde o marido a confinara, mas ninguém se atrevia a fazer fosse o que fosse.

Ninguém, com excepção de Ahmed. Atormentado por aqueles gemidos que não cessavam, e apesar de saber que tal tratamento era justo e correcto, o rapaz tomou em silêncio uma decisão que iria mudar a sua vida.

Começou por evitar ficar em casa. Logo que as aulas terminavam, ia para a mesquita rezar e estudar e só chegava a casa pela noite, a tempo do jantar.

Mas em breve se interrogou quanto à sensatez da opção de se refugiar naquela mesquita. O xeque Saad era o mullab do santuário, mas sempre que o via Ahmed lembrava-se das palavras do professor Ayman, que Alá o protegesse: o teu mullah é um sufi, afasta-te dele.

Passou a prestar uma atenção crítica a tudo o que Saad dizia. Até que um dia lhe ouviu uma oração que o fez erguer o sobrolho.

"«Meu Deus, como és bom com aquele que vai contra os Teus princípios»", rezou o xeque nessa ocasião. "«Quem Te procurou e foi renegado por Ti, ou quem procurou refúgio em Ti e foi traído, ou quem se aproximou de Ti e foi afastado?»"

Ahmed ficou a pensar nesta oração. "Meu Deus, como és bom com aquele que vai contra os Teus princípios"? Mas o que é isto? Alá é bom com quem não O respeita? Onde estaria isso escrito?

Quando a oração terminou, Ahmed foi ter com Saad.

"Xeque, posso fazer-lhe uma pergunta?"

"Diz, rapaz."

"Que oração foi essa que o senhor recitou? Não me lembro de a ver no Alcorão..."

"É uma oração da ordem Naqshbandi."

"O Profeta recitou-a?"

Saad sorriu e contornou a pergunta. 0

"A ordem Naqshbandi surgiu alguns séculos depois do Profeta, rapaz." Inclinou-se para o seu pupilo, afagando-lhe o cabelo. "Estou a ver que esta oração te interessou. E bela, não é? Nela se reflecte a bondade e a tolerância do islão."

Ahmed não fez comentários, mas registou na mente o nome da ordem. A primeira oportunidade escapuliu-se para a biblioteca da mesquita e foi procurar num livro referências dos Naqshbandi.

Descobriu que se tratava de uma ordem ligada a Bahauddin Naqshband, o santo de Bucara que viveu no século xiv. A meio do texto, o livro referiu a corrente islâmica a que pertencia essa ordem.

Era sufi.

"Logo vi", murmurou Ahmed, estreitando os olhos.

"Logo vi!"

A associação do xeque aos sufis tornava-se-lhe agora clara, mas faltava-lhe ainda uma prova definitiva. Não foi Maomé que disse que não se pode acusar ninguém sem provas suficientes? Não foi o Profeta que exigiu até em certos casos a presença de quatro testemunhas para que ninguém fosse in-justamente acusado?

A

prova

surgiu-lhe

inesperadamente

na

sexta-feira seguinte. No final da oração do meio-dia, Saad aproximou-se do pupilo.

"Lembras-te daquela oração que no outro dia te deixou fascinado?"

Ahmed levou alguns instantes a perceber que o clérigo se referia à oração da ordem Naqshbandi.

"Sim...", murmurou com uma expressão velada, de modo a ocultar o que verdadeiramente pensava.

"Pois há mil maneiras de chegarmos ao Criador", disse o xeque enigmaticamente. "A oração é apenas uma delas."

"Não entendo. O que pretendes dizer com isso?"

"Queres que eu te mostre?"

Ahmed ainda pensou em dizer que não; suspeitava daquelas novidades. Mas percebeu que estava ali uma oportunidade de ouro para melhor conhecer o seu mestre e, vencendo a relutância, acabou por aquiescer.

Nessa noite o clérigo levou-o ao coração do Cairo, o souq de Khan Al-Khalili. Metendo por uma ruela, conduziu-o a um edifício antigo com um grande pátio central coberto de cadeiras e um palco montado ao fundo. O pátio estava cercado pelos três andares do edifício, com elegantes mashrabiyya cravados nos andares superiores.

"Isto é um wikala", anunciou. Perante o olhar inquisitivo do pupilo, percebeu que a palavra nada lhe dizia. "Sabes que antigamente, quando ainda não havia hotéis, existiam aqui no Cairo pousadas usadas pelos mercadores que atravessavam o Sara em caravanas. Esta é uma delas."

Ahmed contemplou com desconfiança as cadeiras e o palco montados no pátio e a multidão que se aglomerava no local. Viam-se turistas kafirun a tomar alguns lugares.

"Estas pessoas não têm ar de ser caravaneiras. O

que estão aqui a fazer?"

"Tem paciência e já perceberás."

Minutos mais tarde um grupo de homens com turbantes e vestes brancas ou coloridas subiu ao palco e outro apareceu nas varandas com instrumentos na mão, sobretudo tabla. Os aplausos encheram o pátio e, acto contínuo, os homens das varandas começaram a tocar e os do palco puseram-se a rodopiar ao ritmo da música. Era uma melodia estranha, quase hipnótica, com um poder que fazia vibrar o ar e reverberar as paredes do wikala.

Os dançarinos rodopiavam e rodopiavam, seguindo a cadência viciante da música, gitando as túnicas como rodas, a melodia a crescer sem cessar, num frenesim empolgante, num remoinho arrebatador; eram piões, eram o vento do deserto, eram vórtices coloridos, vários corpos num movimento único, reduzidos a manchas,