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transformados

num

torvelinho,

mergulhados em transe. "O que estão eles a fazer?"

"Buscam a comunhão com o Criador." O xeque fez um gesto em direcção às figuras rodopiantes; as anteriores tinham revoluteado para fora do palco e agora eram homens com túnicas e turbantes negros que redemoinhavam em crescendo. "Vê como é belo!

Vê como é sublime! Unem-se a Deus através da música e da dança. Mas também o fazem através da meditação e da recitação. Há mil maneiras de comungar com Alá."

Ahmed fez um esgar de repulsa.

"Comungar com Alá? São cristãos?"

"Muçulmanos."

O rapaz quase abanou a cabeça em desaprovação, mas dominou-se. Onde já se vira tal coisa?

Muçulmanos a comungar com Deus? Muçulmanos a usar a meditação, a música e a dança para se unirem ao Misericordioso? Onde estava isso escrito no Alcorão?

Cravou os olhos no xeque, que se mantinha preso ao bailado hipnótico dos dançarinos rodopiantes, e fez-lhe a pergunta com intensidade.

"Quem são estes homens?"

"Dervish."

"O que é isso?"

O xeque desviou enfim a atenção dos dançarinos e sorriu com bonomia para o seu pupilo. "Ascetas sufis." A prova!

Ahmed não sabia se devia estar revoltado ou sentir-se esfu-ziante por ter finalmente confirmado as suas suspeitas. Mas agora não havia dúvidas. O

xeque era um sufi! O professor Ayman tinha razão!

O xeque era um sufi! E o que era um sufi senão um muçulmano submetido a influências cristãs?

Um kafir, portanto.

Isso queria dizer que ele, Ahmed, estava a ser ensinado por um kafir! Isso queria dizer que o verdadeiro islão não era aquele que o xeque lhe explicava nas suas lições. Pior ainda, o verdadeiro islão não era aquele que o mullah pregava todas as sextas-feiras na mesquita. Ele e a família estavam a ouvir uma doutrina cristã encapotada, não o verdadeiro islão! O verdadeiro islão era outro. O

verdadeiro islão era o que se encontrava exposto por Alá no Alcorão e exemplificado pelo Profeta na sunnah. O verdadeiro islão era o da sura 9, versículo 5. "«Matai os idólatras onde os encontrardes.

Apanhai-os! Preparai-lhes todas as espécies de emboscadas!»"

Como poderiam os verdadeiros muçulmanos ignorar tão claras ordens de Alá?

Passou a evitar o xeque Saad e aquela mesquita.

Quando as aulas terminavam na madrassa optava por escapar-se para longe, deambulando pelas ruas do Cairo, primeiro perdido em busca de um rumo que não sabia definir, depois encontrando-se quando, a dois passos do wikala onde actuavam os dervish sufis, deparou com aquela que lhe pareceu a mais bela mesquita do souq de Khan Al-Khalili.

A grande mesquita de Al-Azhar passou a ser o seu destino depois das aulas. A hora das orações convergia para o santuário, em pleno bazar, onde recitava com redobrado vigor as orações a Alá. Os mullabs pareciam-lhe ainda demasiado desviantes, mas ao menos não eram sufis. Além disso, concluiu que o islão desviante era defeito geral no Egipto, o medo de desagradar ao governo parecia maior do que a fé desses clérigos cobardes. Para contornar o problema, concentrava a sua atenção essencialmente na recitação do Alcorão, ignorando a maior parte do sermão pregado à hora da oração.

O resto do tempo era passado entre os comerciantes do bazar. Gostava do bulício, das cores, dos aromas, da excitação, das gentes diversas que por ali passavam. Vagueava sozinho pelo souq, embora o seu poiso habitual fosse um trecho da Sharia Al-Muizz li-Din Allah onde a certa hora pousava a longa sombra do minarete em xadrez vermelho do complexo Al-Ghouri. Ouvia da rua as vozes em coro de crianças da madrassa do complexo a recitarem o Alcorão e, sentado no passeio, entretinha-se a acompanhar a recitação. Ah, como era retemperador ouvir as palavras de Alá entoadas por aquelas vozes macias!

"Pssst!"

Ahmed voltou a cabeça, tentando perceber se era com ele. Estava sentado num degrau do acesso ao complexo de Al-Ghouri, mesmo junto à mesquita.

Havia algumas semanas que frequentava aquele trecho da rua e tornara-se notado entre os comerciantes da zona.

"Pssst! Ó miúdo, anda cá!" Era mesmo consigo.

Viu o vendedor de uma loja de cachimbos de água chamá--lo com o dedo e, após uma hesitação, foi ter com ele. "Queres falar comigo?" "Sim, miúdo. Como te chamas?" "Ahmed."

"Não me ajudas a arranjar fregueses para o meu negócio?" O rapaz espreitou com curiosidade os múltiplos cachimbos de água espalhados pelo chão e pelas prateleiras. "Eu, senhor?"

"Apesar de estarmos na Al-Muizz, os turistas raramente vêm para esta parte do souq", queixou-se o comerciante. "Preciso de alguém que os vá buscar à Midan Hussein." Tirou do bolso uma moeda de cobre reluzente. "Dou-te vinte piastras por cada turista que me tragas e que me compre uma sheesha."

Acenou com a moeda como se tentasse o rapaz com uma doce baklava. "Vinte piastras!"

Desconcertado com a inesperada proposta, Ahmed levantou o rosto para a tabuleta no topo da porta de entrada. Tinha escrito Arif e o adolescente presumiu que se tratava do nome do dono do estabelecimento.

"E se ele não comprar nada?"

"Bem, nesse caso não levas dinheiro, claro. Mas, se fizeres..." "Pai!"

A voz, suave e melodiosa, veio de dentro da loja e os dois voltaram os olhos naquela direcção. Apareceu nesse instante, por uma porta atrás do balcão, uma rapariga de uns dez anos, magra e com uns olhos negros luminosos, pareciam pérolas polidas. Ahmed sentiu um baque. Aquela menina era a criatura mais bela que alguma vez vira.

"Adara!", exclamou o comerciante. "Vai lá para dentro!" "Mas, pai..."

"Vai lá para dentro imediatamente! Agora estou ocupado, não vês? Já te chamo."

A rapariga deu meia volta e desapareceu. Era um anjo como Ahmed jamais havia visto. E ele sabia como se chamava. Adara. Que nome tão belo e apropriado! Adara. A*pala-vra árabe para virgem era perfeita para criatura tão sublime. Adara...

Sem hesitar, o rapaz estendeu a mão na direcção do comerciante. "Aceito."

Arif encarou-o e abriu a boca num sorriso feio, revelando incisivos apodrecidos. "Excelente!"

"Vou encher-lhe a loja de clientes."

XVII

"Onde é o seu hotel?"

Tinham acabado de sair do Harry's e Tomás decidiu fazer de cavalheiro até ao fim.

"Ao pé do teatro La Fenice", disse Rebecca. "É

aqui perto, não se preocupe."

"Eu acompanho-a. O meu hotel também não é longe."

Veneza à noite tinha algo de irreal, parecia um palco fantasmagórico. A luz desmaiada dos candeeiros afagava timidamente as fachadas coloridas de branco, de amarelo, de rosa. Por toda a parte viam-se lojas elegantes, alternando com restaurantes acolhedores e edifícios históricos requintadamente

conservados.

A

multidão

deambulava distraída, os olhos a saltitarem pelas vitrinas ricamente decoradas, os passos levando-as ao abandono pelo enredado de calles.

"É curioso os muçulmanos fundamentalistas usarem imagens pornográficas para esconder mensagens cifradas, não acha?", observou a americana.

"Isso tem a ver com uma ordem dada por Alá no Alcorão." "A sério? Alá manda ocultar mensagens em mulheres debochadas?" Tomás riu-se.

"Claro que não", disse. "Mas há um trecho do Alcorão, julgo que no capítulo 57, onde é dito:

«Criámos o ferro — nele há grandes danos e grande utilidade para os homens —*para que Deus em segredo conheça os que O socorrem a Ele e aos Seus Enviados.» Este versículo é interpretado como uma autorização divina para os muçulmanos usarem tecnologias modernas de modo a difundirem o islão.