"Claro que não."
"Os nossos sistemas de vigilância mostram que a mensagem que lhe mostrei no Harry's foi aberta há dois meses num cibercafé de Lisboa. O remetente é um endereço que andamos a vigiar há alguns anos e que sabemos ser apenas usado para emitir ordens operacionais de grande magnitude. Isso mostra que..."
"Se é assim", interrompeu Tomás, "porque não encerram esse endereço?"
"Porque já o temos localizado e não o queremos queimar. Se o encerrássemos, a Al-Qaeda abriria outro, provavelmente com maiores cautelas ainda, e emitiria ordens operacionais sem que pudéssemos saber nada. Tendo este endereço identificado, dispomos ao menos da possibilidade de observar o tráfego, de interceptar mensagens e de perceber se vai ou não acontecer alguma coisa."
"Estou a entender."
Rebecca calou-se por um momento, tentando retomar a ideia que expunha quando foi interrompida.
"Como eu estava a dizer, o facto de terem sido emitidas ordens através desse endereço mostra-nos que vai acontecer alguma coisa. E o facto de esse e-mail ter sido aberto num computador cujo IP está num cibercafé de Lisboa mostra-nos que os operacionais a quem foram dadas as ordens se encontram em Portugal."
"Acha, portanto, que vai ocorrer um atentado em solo português..."
"Isso já não sei", retorquiu ela. "Só há uma maneira de responder a essa pergunta, não lhe parece?"
"Qual?"
"Decifre a mensagem que lhe passei há pouco.
Tudo depende do que estiver contido nela."
Tomás meteu a mão ao bolso e extraiu o bloco de notas. Folheou-o e localizou a página para onde havia copiado a linha de letras e números que se encontrava oculta sob a imagem pornográfica.
6 AY-H A S 1 H A 2 R.U
"Não há forma de vocês me arranjarem a chave desta cifra, pois não?"
A americana soltou uma gargalhada.
"Se a tivéssemos, Tom, pode acreditar que já a teríamos usado!", exclamou. "Oiça, o e-mail contém sem dúvida ordens operacionais. Essa mensagem foi aberta em Lisboa, o que significa que este atentado pode envolver o seu país. Se eu fosse a si, sabe o que fazia? Metia horas extraordinárias para decifrar o que aí está escrito!"
"Oiça, eu sou apenas um historiador. Porque não entregam antes este assunto ao SIS?"
"Já entregámos."
"E eles?"
Rebecca revirou os olhos.
"Não sabem nada."
"Mas o que disseram eles?"
"Que a comunidade muçulmana portuguesa é muito pacífica e que não há problemas." "E têm razão."
A americana apontou para o papel que Tomás mantinha entre os dedos.
"Acha que sim? Se têm razão, então quem foi que usou um cibercafé de Lisboa para abrir a mensagem da Al-Qaeda que escondia essa cifra? O menino Jesus?"
O português parou para reler a linha que tinha anotado no bloco de notas. Dois segundos depois, fechou o bloco com um gesto decidido e arrumou-o de novo no bolso.
"Não sei", disse. "Mas acredite que vou descobrir."
XVIII
O homem era loiro, de pele avermelhada pelo sol, e olhava com interesse para os produtos expostos ao longo da ruela adjacente à Midan Hussein.
"Mister! Mister!", chamou Ahmed com um sorriso encantador ao acercar-se do potencial cliente.
"Venha ver a gruta de Ali Babá!"
"Ai sim?", sorriu o ocidental. "O que tem ela de especial?" "Está cheia de tesouros."
A vida de Ahmed depois das aulas passou a ser deambular pelas ruelas do souq em busca de clientes ocidentais. Sabia um inglês elementar com jargão para turistas que Arif lhe ensinara e que foi aperfeiçoando no contacto com os estrangeiros.
Muitos
ocidentais
achavam-lhe
graça
e
deixavam-se arrastar pelo labirinto do Khan Al-Khalili até à loja dos cachimbos de água, quase à sombra do minarete de Al-Ghouri. Havia dias em que angariava tantos clientes e recebia por isso tantas piastras que chegava a somar cinco ou dez libras egípcias.
"Masba'allab!, Ahmed! Masbaallah!"
Arif, o dono da loja, mostrava-se de tal modo satisfeito com o desempenho do seu jovem angariador que passou a chamar-lhe o meu menino.
Convidava-o para almoçar à sua mesa, na copa, de onde Ahmed espreitava amiúde as mulheres a comer na cozinha. Arif tinha várias filhas, todas elas esbel-tas e ruidosas, mas o rapaz só parecia ter olhos para a bela Adara. As mulheres mantinham-se à parte, mas sempre que a rapariga, por qualquer motivo, se aproximava, Ahmed corava e baixava o rosto.
Desde que começara a trabalhar para a loja dos cachimbos de água, jamais trocara uma palavra com ela. Astuto, como bom comerciante que era, Arif acabou inevitavelmente por notar o interesse que o seu protegido nutria pela filha. Não ficou aborrecido. Não tinha a certeza de que Ahmed fosse a pessoa ideal para Adara, menina que considerava especialmente rebelde, mas também era verdade que não estava certo do contrário, pelo que decidiu acompanhar o pupilo com atenção.
O comportamento que ao longo do tempo foi observando em Ahmed agradou-lhe. Descobriu que o rapaz, como bom muçulmano, gastava parte do dinheiro que ganhava na zakat, as esmolas que distribuía aos necessitados. Ahmed limitava-se a cumprir com zelo os ensinamentos do xeque Saad, uma vez que percebera já que a maior parte do que o mullab lhe explicara não eram necessariamente ideias sufis, mas o verdadeiro islão. E foi esse islão que Arif descortinou em Ahmed. O Alcorão e a sunnab do Profeta ordenavam a generosidade e o respeito pelos outros, virtudes que começavam justamente pela distribuição desinteressada da zakat pelos desfavorecidos. Ahmed orgulhava-se de ser o mais crente de todos os crentes, pelo que nunca descurava esta obrigação, facto que não passou despercebido a Arif.
Alá ordenara também o respeito pela família e Ahmed, apesar de evitar passar tempo em casa, entregava à mãe a parte que lhe restava do dinheiro ganho no souq.
"Onde arranjaste isto?", perguntou-lhe a mãe da primeira vez que o filho lhe estendeu duas notas de uma libra.
"No souq", respondeu com honestidade, tal como ordenado por Alá no Alcorão. "A trabalhar nuraa loj«
de sheesha."
Os pais encolheram os ombros à novidade e deixaram-no fazer como quisesse; desde que frequentasse a madrassa e fosse passando de ano, para eles estava tudo bem.
Mas Arif, a quem nada escapava, chegava já a conclusões.
"O que achas de Adara?"
A pergunta de Arif apanhou Ahmed de surpresa. A rapariga acabara de passar pela copa e o seu admirador secreto seguira-lhe o vulto com mal disfarçado interesse.
"Hã?", exclamou o rapaz, atarantado, como se tivesse sido apanhado com a mão nas baklavas.
"Adara. O que pensas dela?"
Ahmed corou e, sentindo-se desnudado pelos olhos perscrutadores do patrão, baixou os olhos. "Eu... eu...
não sei."
"Não sabes? Então não a vês? Ora essa, ela acabou de passar por aqui..."
O adolescente manteve-se muito quieto no seu lugar, horrorizado com a forma tão transparente como se deixara ler.
"Gostarias de casar com ela um dia?"
Ahmed ergueu os olhos, uma centelha de esperança a iluminar-lhe o rosto.
"Eu?"
Arif riu-se.
"Sim, tu. Quem haveria de ser? Achas que darias um bom marido para Adara? Ela é uma boa rapariga."
Com o coração a ribombar-lhe no peito e a garganta estrangulada pela emoção, o rapaz apenas conseguiu balouçar afirmativamente a cabeça e deixar escapar pelos lábios um fiozinho de voz. bim.