"Terás de a domar, claro. A minha filha é um pouco rebelde e precisa da mão firme de um homem.
Sentes-te à altura dessa tarefa?"
O fiozinho de voz voltou:
"Sim."
"Isso implica que sejas sempre um bom muçulmano, não um mole como esses kafirun que aqui me trazes à loja. Achas que posso estar descansado quanto a isso?"
Neste ponto a voz de Ahmed ganhou corpo e firmeza; isso de bom muçulmano era algo que estava determinado a ser ao longo da vida, custasse o que custasse.
"Com a graça de Deus não o desiludirei!"
Arif soltou uma gargalhada e deu-lhe uma palmada nas costas. O acordo estava selado; agora era apenas deixar que Ahmed e Adara crescessem.
Crescer foi coisa que os dois se encarregaram de fazer sem que ninguém lhes desse ordens para tal.
Nos anos seguintes a vida de Ahmed centrou-se na madrassa de manhã e no souq à tarde. Foram tempos de maturação e experiência.
O contacto com os turistas provocava no rapaz uma repulsa que se esforçava por ocultar.
Desaprovava a forma desnudada e imodesta como as mulheres ocidentais se apresentavam em público; elas atreviam-se mesmo a expor os ombros e as coxas, pareciam verdadeiras mulheres de rua, ordinárias e desavergonhadas. Não tinha sido o Profeta que ordenara o decoro? Onde estavam os véus que as protegiam dos olhares ínvios? Por vezes observava até casais de turistas a andarem de mão dada em público!
Encolhia os ombros, num misto de fúria e resignação. Eram kafirun, o que se havia de fazer?
Os relatos sobre os cruzados é que falavam verdade, concluiu. O professor Ayjnan, que Alá o protegesse onde quer que o tivessem encerrado, é que tinha razão, confirmou. Esta gente bárbara desconhecia as mais elementares regras de decência e boa conduta, não passavam todos de animais entregues aos instintos mais primários. Os kafirun pareciam ricos, claro; mas nem por isso eram mais do que meros selvagens.
Que diferença entre essa gente e Adara, por exemplo! Os meses haviam-se feito anos e o corpo de Adara evoluíra de menina para uma mulherzinha.
Logo que teve a primeira menstruação, o pai ordenou-lhe que se cobrisse quando saísse à rua, não fosse a nudez da sua pele leitosa desencadear involuntariamente a excitação sexual dos homens.
Ahmed aprovou esta decisão com todo o coração; não tinha sido o Profeta que, segundo um hadith, havia dito que "quando uma mulher atinge a idade da menstruação não é adequado que ela exiba partes do seu corpo, excepto isto e isto", apontando para o seu rosto e mãos? As mulheres kafirun não passavam de umas ordinárias, enquanto bastava pousar os olhos na filha de Arif para perceber a modéstia e o decoro que caracterizavam as crentes. Que contraste! As kafirun exibiam o corpo despudoradamente, enquanto Adara saía totalmente coberta, como o mensageiro de Deus requeria.
O problema é que, com o tempo, a rapariga pareceu dar alguns sinais de rebeldia e, a certa altura, começou a escolher certos adereços que pareciam pouco apropriados ao rapaz a quem estava prometida. Ahmed calou-se de início, mas, quando estes comportamentos se tornaram demasiado ostensivos, chegou o momento em que não se conteve e decidiu chamar a atenção de Arif.
"Adara vai sempre à rua adequadamente coberta", observou certo dia ao almoço, medindo as palavras com cuidado. "Mas, há pouco, vi-a sair e fazer uma coisa que chama um pouco a atenção dos homens."
"O quê?", alarmou-se Arif, preocupado com a reputação da filha. "O que a viste fazer?"
"Levava saltos altos", denunciou Ahmed, baixando a voz. "Deixa os homens imaginarem-lhe as pernas..."
O patrão deu um murro na mesa, subitamente irado.
"Por Alá, isso não pode ser! Quando essa rapariga voltar vou ter uma conversa com ela!"
"Ela tem de andar de sapatos baixos." Ergueu o indicador. "E há outra coisa: cheirava a champô perfumado. Isso é perigoso! Distrai a mente dos homens, afastando-os de Alá e inspirando-lhes fantasias pecaminosas."
Arif levantou-se de rompante, incapaz já de conter a justa indignação de pai ultrajado.
"Tens razão", vociferou. "Quando ela chegar vai receber um correctivo! Não quero poucas-vergonhas na minha casa!"
O contacto com os ocidentais expôs Ahmed a algumas ideias novas. Certo dia, quando seguia pelas ruas do souq em direcção à loja dos cachimbos de água, ouviu um dos turistas perguntar-lhe o que achava do governo do Egipto. O rapaz riu-se e encolheu os ombros.
"Eu não acho nada, mister. Sou um simples muçulmano."
"Mas não gostarias de ter democracia no teu país?"
A pergunta extraiu uma expressão vazia de Ahmed. "O que é isso, mister?" Foi a vez de o turista se rir.
"Democracia? Nunca ouviste falar de democracia?"
"Eu não, mister."
"E tu poderes escolher o teu presidente", explicou o europeu. "É tu teres uma palavra a dizer na forma corrfb se governa e se fazem as leis do teu país.
Não gostavas?"
"Mas para que preciso eu disso, mister?"
A pergunta pareceu ao turista tão ingénua que o deixou por momentos desconcertado.
"Sei lá, para... para poderes substituir o teu presidente, por exemplo. Olha, imagina que achas que ele está a governar mal. Em vez de o teres a mandar para sempre, podes tirá-lo e pôr lá outro que governe melhor."
"Mas ele não vai deixar, mister."
O turista riu-se outra vez.
"Claro que não! É por isso que precisas de leis democráticas, que permitam substituí-lo. Não gostavas de as ter?"
"Nós não precisamos de novas leis, mister", retorquiu Ahmed, abrandando o passo porque estavam prestes a chegar à loja dos cachimbos de água. "Para nos governar já temos as leis apropriadas."
"Quais? As destes ditadores que mandam em vós?"
O rapaz apontou para cima.
"As de Alá."
Com o tempo foi-se apercebendo de que o souq estava cheio de polícias. Alguns andavam uniformizados, eram facilmente detectáveis. Mas havia outros que circulavam à paisana, se misturavam na multidão e se infiltravam por toda a parte; pareciam formigas.
Ahmed tomou pela primeira vez consciência de que andavam por ali quando viu uns desconhecidos a apreenderem produtos espalhados por um vendedor sobre um tapete no passeio - camisas de marca, rádios, perfumes.
"Contrabando", explicou-lhe, lacónico, Arif, encostado à porta a acompanhar a cena.
Sentado no degrau da loja dos cachimbos de água, Ahmed observava surpreendido os homens a algemarem o comerciante que havia sido apanhado em flagrante.
"Mas qualquer pessoa pode prendê-lo?"
Arif riu-se.
"Estes tipos não são pessoas quaisquer, rapaz", disse, suficientemente baixo para apenas ser escutado pelo seu jovem empregado. "São polícias."
O incidente despertou Ahmed para uma nova realidade. Havia polícias à paisana a circular pelo bazar. Daí em diante começou a estar mais atento a tudo o que se passava em seu redor. Sempre que via esses polícias actuar e deter alguém, parava para os observar com cuidado. Registava os rostos, as atitudes, as expressões, o que diziam, o modo como andavam, a forma de olharem.
Começou assim a distinguir as características que os diferenciavam. Percebeu que esses homens não eram sorridentes ou espontâneos como as outras pessoas que se viam no souq; em vez disso tinham um rosto tenso, grave, compenetrado. Apresentavam também uma maneira característica de caminhar; não o faziam com uma descontracção natural, embora se esforçassem por parecê-lo, antes revelavam uma rigidez que não conseguiam ultrapassar.