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Comandei-os na Chechénia e respondo por eles."

O camião percorreu o perímetro de PO Mayak no sentido inverso ao de meia hora antes e regressou ao portão de entrada. O homem que ficara de guarda à casamata saltou para a carga e o veículo retomou a marcha, metendo pela Prospekt Lenina e fundindo-se na neblina com a escuridão da noite gelada.

Na carga levava o novo pesadelo da humanidade.

I

Foi a meio da estreita ponte baixa, entre a lagoa Azul e a lagoa Verde, que Tomás reparou no homem.

Era loiro e tinha o cabelo cortado muito curto, quase eriçado, óculos escuros a ocultarem-lhe os olhos e uma pose ambígua. Estava sentado ao volante do seu pequeno automóvel negro e contemplava a paisagem com a postura de alguém que passeava e ao mesmo tempo esperava.

"Deve ser um turista", murmurou Tomás.

"O quê?", perguntou a mãe.

"Aquele homem. Vinha atrás de nós desde Ponta Delgada, não reparou?" "Não. Porquê?"

Após um longo instante a fitar o desconhecido estacionado à entrada da ponte, Tomás abanou a cabeça e sorriu, tranquilizador.

"Não é nada", disse. "Sou eu com as minhas manias, só isso."

Dona Graça passeou o olhar pela paisagem, deixando-se inebriar pela harmonia serena do panorama que a abraçava. O vale verde e viçoso espraiava-se até uma longínqua parede circular, a verdura apenas interrompida pelos dois grandes espelhos de água que se estendiam em ambos os lados da ponte baixa. Uma floresta de pinheiros bordejava terrenos de pastagem, com hortênsias e fúcsias a colorirem as encostas.

"Que bonito!", exclamou ela. "E lindo, lindo."

O filho aquiesceu com a cabeça.

"E uma das mais belas paisagens do mundo, não há dúvida."

"Ah, lá isso é! Um espectáculo!"

"A mãe sabe como foi isto tudo formado?"

"Não faço a mínima ideia."

Tomás esticou o braço direito e indicou com o dedo a longa muralha que rodeava o horizonte como um anel.

"Esta é a caldeira de um vulcão, já reparou?"

O alarme incendiou o olhar de dona Graça, subitamente assustada.

"Estás a brincar!"

"A sério", insistiu o filho. "Não vê que aquela muralha ali ao fundo cerca todo o vale? Aquilo são as paredes da cratera, têm mais de quinhentos metros de altura. Nós estamos mesmo no meio da caldeira."

"Ai Jesus! Isto é a caldeira de um vulcão? E... e não é perigoso permanecermos aqui, filho?"

Tomás sorriu e puxou-a pelo ombro, terno.

"Não se assuste, mãe. Não vai haver nenhuma erupção, pode ficar descansada."

"Como podes ter tu a certeza disso, valha-me Deus? Se isto é um vulcão pode... pode rebentar tudo! Não viste aquele programa na televisão sobre o Vesúvio?"

O filho apontou para a encosta ocidental da cratera.

"A última vez que houve aqui actividade vulcânica ocorreu ali ao fundo, no pico das Camarinhas. Foi há trezentos anos."

"E então? Isto pode explodir outra vez!"

"Claro que pode. Mas quando isso acontecer haverá sinais. Um vulcão não entra assim em erupção máximaxle um momento para o outro. Primeiro aparece alguma actividade que serve de alarme."

Indicou umas casas que bordejavam a lagoa Azul.

"Olhe, isto é tão seguro que até vive ali gente, está a ver?"

A mãe espreitou o casario, uma expressão pasmada no olhar.

"Ah, ora esta! Há aqui uma povoação?" "Chama-se Sete Cidades. Vivem aqui mil pessoas." Dona Graça levou as mãos à cabeça.

"Credo, eles são malucos! Como é possível viver na cratera de um vulcão, Virgem santíssima?"

Benzeu-se. "Valha-me Deus! E se isto rebenta tudo?"

"Já lhe disse que, se o vulcão recomeçar a actividade, primeiro haverá sinais."

"Quais sinais?"

Tomás indicou os dois lagos que os cercavam, um azulado como o céu e o outro esverdeado como a floresta em redor.

"A água punha-se a fervilhar, por exemplo. Ou então começava a erguer-se fumo do chão e haveria tremores de terra de origem vulcânica. Sei lá, há muitos sinais que servem de aviso. Mas, como vê, está tudo tranquilo, não vai acontecer nada."

Uma aragem fresca descia pelas paredes da enorme cratera e percorria a superfície plácida dos lagos. Dona Graça ajeitou o colarinho do casaco de modo a proteger melhor o pescoço e puxou o filho pelo braço. "Está frio."

"Tem razão. Se calhar é melhor sairmos daqui."

Entraram no carro encostado à berma da ponte e logo se sentiram mais aquecidos, refugiados do vento que soprava, desagradável.

"Onde vamos agora?", perguntou a mãe.

"Não sei. Onde quer ir? Lá à frente está Mosteiros..."

"Não", disse ela, indicando as casas na margem da lagoa Azul. "Vamos antes ali à vila."

Tomás ligou a ignição e o motor começou a funcionar. Arrancou, fez meia volta e passou pelo carro negro do homem loiro, seguindo em direcção à povoação. Uma placidez aprazível espreguiçava-se naquele recanto verde da ilha de São Miguel; ali era tudo tão sereno que dava a impressão de que o tempo parara.

Uma tabuleta indicava as Sete Cidades. Mais por hábito do que por desconfiança, ao fazer a curva para a direita Tomás espreitou pelo retrovisor.

O carro negro do homem loiro vinha atrás.

O automóvel que Tomás alugara em Ponta Delgada percorreu devagar a pequena localidade das Sete Cidades, que parecia adormecida àquela hora da manhã. As casas, mimosas e bem arranjadas, tinham as janelas abertas e roupas estendidas ao sol, mas não se via vivalma nas ruas.

"Isto é tão engraçado", observou dona Graça.

"Devíamos ter trazido o teu pai."

Tomás, que mantinha a atenção fixa no espelho retrovisor, desviou o olhar para a mãe. Uns dias eram piores e outros melhores, mas não havia dúvidas de que o

Alzheimer estava lá. Aquele parecia ser um dos dias melhores; a mãe reconhecia-o e conversava quase normalmente com ele, com tanta naturalidade que Tomás por momentos se esquecia da senilidade prematura que tomara conta dela. A observação relativa ao pai, porém, servira para lhe lembrar que aquela lucidez era enganadora e que havia acontecimentos relativamente recentes que a mãe já

,apaga*a da memória. Um deles era, obviamente, a morte do marido. Dona Graça falava dele como se ainda vivesse e Tomás já desistira de estar sempre a contar-lhe uma verdade que ela de imediato iria esquecer. E quem sabe se não era melhor assim? Se achava que o marido ainda estava vivo, talvez fosse sensato deixá-la acreditar nisso; a ilusão parecia inofensiva e mantinha-a feliz.

"Olha ali! Olha ali!"

"O quê?"

A mãe indicou uma elegante fachada branca com uma torre ao meio, coroada por uma cruz. "A igreja!

Anda, filho, vamos ver."

Sabendo que a mãe tinha a mania das coisas religiosas, Tomás não hesitou; estacionou o carro na berma da rua e saiu. Olhou para trás e viu o pequeno automóvel negro dobrar a esquina e parar junto ao passeio, a uns cem metros de distância.

"Mas que raio!", exclamou, intrigado, com a mão a segurar a porta do carro ainda aberta. "O que é, filho?"

"E aquele carro", disse. "Não nos larga." A mãe lançou o olhar na direcção do automóvel. "Anda a passear, como nós. Deixa-o." "Mas ele vai para onde vamos e pára onde nós paramos. Não é normal!"

Dona Graça sorriu.

"Achas que nos está a seguir?"

"Se não está, parece!"

"Ai que disparate! Vê-se mesmo que andas a ver muitos filmes, Tomás. Quando chegarmos a casa vou falar com o teu pai, acho-te com a imaginação muito fértil. Esta semana não vai haver O Santo. A televisão anda a fazer-te muito mal à cabeça!"