Ah, enquanto aquele governo existisse não se ia a lado nenhum! Não fora aquela gente que tivera o desplante de ir a Al-Quds e fazer a paz com os sionistas? O faraó Sadat dera a cara, mas Mubarak também estivera envolvido na traição, o apóstata! E
o que era o pequeno Ahmed diante de tão grande afronta? Se tiveram a falta de vergonha de irem à terra dos kafirun abraçar os sionistas, o que lhes custava mandar um pobre e humilde crente durante três anos para a cadeia por se ter defendido de um cruzado?
O sentimento de revolta levou Ahmed a pensar numa coisa que um outro turista lhe dissera. Qual fora a palavra que ele utilizara? Democracia, não fora? Ele perguntara se Ahmed gostaria de ter democracia no Egipto. Claro que na altura tinha ido ver essa palavra à enciclopédia. Democracia. Com base no que lera, tinha percebido que isso significava organizarem-se umas eleições e ir toda a gente votar num novo governo.
A ideia, assim à primeira vista, não lhe parecia má de todo. Teria de verificar com um mullab, claro; não com um desviante sufi, mas com um verdadeiro crente. O facto é que, se houvesse eleições, poderia votar contra Mubarak e os seus esbirros e toda aquela miserável corrupção que os arrastava pela decadência. Em vez daqueles vermes, poderiam pôr no governo gente séria e honesta, bons muçulmanos que respei
tassem a sbaria e a vontade de Alá e distribuíssem zakat pelos necessitados e fizessem frente aos kafirun que humilhavam a umma. Sim, talvez fosse disso mesmo que o Egipto precisava. Democracia.
XXI
A vida de Tomás retomou a rotina de sempre. Dava aulas de História na Universidade Nova de Lisboa e fazia consultoria na Fundação Calouste Gulbenkian, curiosamente na mesma rua da faculdade. Aos fins-de-semana ia a Coimbra visitar a mãe ao lar; quando a encontrava mais lúcida levava-a a passear pela Baixinha ou à beira-rio, junto à ponte pedonal.
A novidade na sua vida chegava por telefone.
Rebecca Scott telefonava-lhe com frequência de Madrid para saber se ele tinha conseguido quebrar o segredo da mensagem cifrada que ela lhe mostrara em Veneza ou se obtivera progressos nos seus inquéritos sobre os muçulmanos fundamentalistas em Portugal.
"Descobri alguns sítios em Lisboa onde se fala muito em jihad", anunciou Tomás. "Ai sim? Onde?"
"Os cinemas que passam os filmes do Chuck Norris", gracejou, ecoando a piada de Alcides.
"Olhe que faz mal em levar as coisas para a brincadeira", repreendeu-o a americana do outro lado da linha. "Isto é muito sério!"
As conversas entre os dois limitavam-se às questões do trabalho relacionado com a NEST, mas Tomás tinha a intuição de que ela usava o assunto como pretexto para falar com ele. Era verdade que a intuição nunca fora cr seu forte e poderia até dar-se o caso de ele estar a imaginar coisas, mas era um facto que as conversas telefónicas com Rebecca lhe deixavam essa impressão.
As revelações de Veneza pareceram-lhe na altura de grande gravidade, mas agora, ali na tranquilidade mansa de Lisboa, espreguiçando-se na placidez soalheira dos dias mornos, aquelas ameaças terríveis afiguravam-se-lhe fantasiosas. Para todos os efeitos, decidiu não deixar o assunto morrer por completo. Bem vistas as coisas, a NEST começara a pagar-lhe um salário, modesto é certo, mas suficientemente interessante para o convencer de que tinha de apresentar serviço.
Começou por isso a frequentar as mesquitas com regularidade. Às sextas-feiras o seu poiso principal tornou-se a Mesquita Central, à Praça de Espanha, tão acessível por se encontrar quase ao lado da faculdade e da Gulbenkian. Foi recebido pelos muçulmanos que a frequentavam com um misto de surpresa e satisfação; não era habitual ver por ali gente de olhos verdes.
"Quer tornar-se muçulmano?", perguntaram-lhe com frequência nas primeiras vezes.
"Não, não. Estou aqui só para ver."
Com o tempo começaram a meter-se com Tomás, em particular os moçambicanos e os guineenses que com ele se cruzavam durante as abluções antes da oração.
"Então quando é que o professor declara a sbabada?",
perguntavam-lhe
na
brincadeira,
referindo-se à declaração de aceitação de que existe apenas um Deus e de que Maomé era o Seu Profeta.
De início ria-se e mantinha a versão de que estava ali apenas para ver, mas sentiu que também precisava de se tornar brincalhão e um dia decidiu ir a jogo.
"Ando a pensar nisso", respondeu dessa vez.
Esta réplica foi diferente da habitual, o que suscitou a curiosidade dos seus bem-dispostos interlocutores.
"A sério, pá?"
"Pois", confirmou. "Desde que descobri que os muçulmanos podem ter várias mulheres que não penso noutra coisa!"
Seguiu-se a gargalhada geral, acompanhada de muitas palmadas nas costas.
"Depende das gajas", contrapôs um moçambicano de mãos mergulhadas na água. "Há mulheres que a malta paga para se ver livre delas, caraças!"
Novas gargalhadas.
"Agora a sério", insistiu o historiador. "Existe alguém que seja casado com várias mulheres?"
"Aqui em Portugal?", perguntou um guineense que aguardava a sua vez nas abluções. "Era bom, era!"
"Aqui não há haréns", confirmou o moçambicano, agora a lavar os pés. "O pessoal respeita a lei. Que remédio!"
Tomás descobriu que este ambiente descontraído era o ideal para criar a atmosfera propícia às perguntas de maior alcance sem correr riscos de ofender ninguém. Passou a usar os gracejos cúmplices entre homens, sobretudo a propósito das mulheres, para sondar o terreno de um modo mais eficiente.
"Quem
tem
grandes
vidas
são
esses
fundamentalistas, hem?", passou a dizer na sequência das piadas sobre os haréns.
"Esses é que só obedecem à sharia e casam com todas as miúdas que querem..."
"Podes crer, meu. Podes crer."
"Gostava de conhecer malta dessa. Será que vocês me podem apresentar alguém?"
Sempre que lhes fazia este pedido, os muçulmanos portugueses riam-se.
*
"Só na Arábia Saudita, pá", tornou-se a réplica mais comum.
"Tens de perguntar ao Bin Laden!", era outra resposta habitual.
Só quatro semanas depois de voltar de Veneza, e após mais um telefonema de Rebecca a questioná-lo sobre os resultados do seu trabalho, é que abriu o bloco de notas e fixou os olhos na mensagem cifrada que a Al-Qaeda ocultara debaixo da fotografia pornográfica da ruiva de boca escancarada.
6AY-H A S I M
Começou por ler a linha em voz alta, procurando respeitar as sílabas.
"Seis ay has um ha oito ru." Calou-se, num esforço para discernir o sentido do que lera. "Que raio quererá isto dizer?"
Era um feriado e dispunha de todo o tempo do mundo para resolver aquele mistério. Coçou a cabeça. Assim à primeira vista, aquilo parecia-lhe claramente uma...
Rrrrrrrrrr ...
O som fê-lo endireitar a cabeça. Era o estremecer mudo do telemóvel. Meteu a mão no bolso e extraiu o aparelho. "Está lá?"
"Boa tarde. É o professor Noronha?"
"Sim. Quem fala?" "Daqui Norberto."