Выбрать главу

Tomás fez um esforço de memória, mas o nome não lhe dizia nada.

"Desculpe, não estou a ver..."

"Norberto Mamede. Sou seu aluno na faculdade, em Estudos Islâmicos."

"Ah!", exclamou, batendo com a palma da mão na testa. "Norberto! Desculpa, tinha a cabeça noutro lado. Está tudo bem, rapaz?"

A voz na linha hesitou.

"Mais ou menos, professor."

"Então? O que se passa?"

Norberto fez uma curta pausa antes de responder.

"O professor lembra-se daquela aula que deu no outro dia, quando nos levou a passear por Alfama e pela Mouraria?" "Sim..."

"Lembra-se de ter feito perguntas sobre os...

enfim, sobre os fundamentalistas?"

O coração de Tomás deu um salto. Sentou-se devagar no sofá e empurrou o auscultador do telefone o mais possível contra o ouvido, para se assegurar de que estava a ouvir bem.

"Sim..."

"Pois... a coisa é que eu recebi agora um telefonema e... não sei bem o que fazer, não sei a quem me dirija.... Lembrei--me da sua conversa no outro dia e decidi ligar-lhe, não sei se fiz bem."

"Fizeste bem, Norberto", assegurou-lhe. "Fizeste bem. Comigo estás perfeitamente à vontade. Conta lá, que telefonema foi esse que recebeste?"

A voz do aluno voltou a hesitar.

"O professor lembra-se do Zacarias?"

"Quem? Aquele moço de barbas que andou lá na faculdade no ano passado?"

"Sim, esse mesmo! Lembra-se dele, não lembra?

Foi ele que me ligou."

"E então?"

"O Zacarias sempre teve a mania que era mais-muçulmano do que o resto do pessoal, mais isto, mais aquilo, chateava-se quando nos via a beber cerveja... enfim, ele era rigoroso no cumprimento dos nossos costumes. Acontece que o Zacarias desapareceu no ano passado e nunca mais deu notícias. Confesso que não liguei muito a isso, o gajo às vezes era até um bocado chato. Mas ontem à noite, estava eu a jantar, tocou o telefone. A minha mãe foi atender e disse que era uma chamada de longa distância para mim. Quando peguei no telefone percebi que se tratava do Zacarias."

"Ah. O que te disse ele?"

"Pareceu-me assustado e queria ver se eu o podia ajudar a voltar a Portugal."

"Mas por que razão estava ele assustado?"

"Acho que os tipos com quem ele anda são fundamentalistas."

"Ai sim?"

"A ligação não estava boa, havia muitas interferências na linha, mas pareceu-me que ele disse uma palavra... enfim, uma palavra que me acagaçou um pouco, confesso. Ainda estou nervoso."

"O quê? O que disse ele?"

Norberto suspirou para ganhar coragem.

"Terroristas."

XXII

A porta da cela era metálica e, quando o guarda a abriu, Ahmed viu um mar de cabeças e de corpos voltar-se na sua direcção; o guarda empurrou-o para o interior da cela e a porta fechou-se atrás dele. Um forte fedor a fezes infestava o ar pesado e viciado da cela. Fazia um calor insuportável e o recém-chegado depressa percebeu que era difícil conseguir mexer-se no meio daquela multidão. Os prisioneiros pareciam enlatados, todos comprimidos uns contra os outros.

"Quem és tu, irmão?", perguntou um dos companheiros de cela, um velho de barbas brancas.

Ahmed apresentou-se e, respondendo ao questionário cerrado a que o submeteram, explicou por que motivo havia sido preso. A dado ponto da narrativa elevou-se entre os restantes prisioneiros um leve clamor de aprovação, em apoio aos insultos e aos murros que haviam estado na origem da detenção.

"Estes kafirun têm de aprender que não podem vir aqui à nossa terra comportar-se como cruzados", observou o ho

mem das barbas brancas, arrancando novo coro de assentimento. "Fizeste bem, irmão."

A cela tinha o piso forrado a azulejo branco, com duas

pequenas janelas quadradas no tecto e uma retrete no canto.

Era realmente difícil mexerem-se naquele espaço, havia gente

a mais. Quando Ahmed comentou o assunto, recebeu como

resposta uma pergunta inesperada:

*

"Tens dinheiro?"

O recém-chegado olhou desconfiado para o homem que lhe fizera a pergunta. "Porque queres saber?"

"Porque o dinheiro compra favores. Tens dinheiro?"

Ainda sem entender o propósito da pergunta, Ahmed extraiu do bolso uma moeda de vinte piastras. Os olhares em redor tombaram na moeda como abutres.

"Não chega", disse o homem. "Tens mais?"

Do bolso saiu com hesitação mais uma moeda de vinte piastras.

"Quarenta piastras. E capaz de chegar." O homem aproximou-se da porta da cela e gritou: "Guarda!

Guarda!"

Instantes mais tarde abriu-se uma janelinha na porta e o guarda, um homem gordo e mal barbeado, espreitou para a cela.

"O que querem?"

"Não se consegue respirar aqui. Abre a porta durante dez minutos, por favor."

"O que ganho eu com isso?"

O homem virou a cabeça e olhou para Ahmed.

"Mostra-lhe."

Percebendo enfim o que se estava a passar, o novo recluso exibiu as duas moedas ao guarda. "Quarenta piastras."

A fechadura rodou com três clacs sonoros, a porta foi aberta e o ar fresco jorrou para dentro da cela como um rio. O interior tornou-se de repente mais respirável e menos abafado e uma frescura agradável acariciou os rostos magros e transpirados.

Mas durou pouco este bálsamo. Dez minutos mais tarde, o guarda aproximou-se e trancou de novo a porta. A armadilha voltara a fechar-se.

O alívio só voltou ao cair da noite, quando a porta da cela se abriu de novo e os prisioneiros foram encaminhados como cordeiros pelos corredores da prisão. Assustado, Ahmed bateu no ombro do prisioneiro que caminhava à sua frente e perguntou-lhe para onde iam.

"É o jantar."

Desembocaram de facto num salão com uma grande mesa e três guardas sentados nas pontas. Os reclusos formaram uma fila e, um a um, aproximaram-se dos guardas. Quando chegou a vez de Ahmed, o guarda, percebendo que tinha diante dele um novo preso, olhou-o dos pés à cabeça, como se o inspeccionasse.

"Ya ibn al Kalb, ismakeb?", perguntou. "Filho de um cão, como te chamas?"

"Ahmed ibn Barakah."

O guarda estendeu-lhe um prato de alumínio e mandou-o sentar-se. Um cozinheiro aproximou-se com um grande tacho e despejou-lhe arroz, couves e queijo de ovelha no prato. Como não lhe entregaram talheres, Ahmed viu-se forçado a comer com as mãos; mas não se incomodou. Afinal, era assim que o Profeta comia. E ele tinha muito orgulho em comer como o mensageiro de Deus.

No final do jantar, os reclusos foram devolvidos à sua cela, situada no segundo andar do edifício. A sensação de claustrofobia voltou quando a porta foi fechada. Era já noite cerrada e os presos deitaram-se no chão de azulejo, tentando dormir. A impressão de que não passavam de sardinhas enlata-das tornou-se nesse instante mais forte e, esquadrinhando a cena em torno dele, Ahmed apercebeu-se de que cada pessoa só tinha espaço suficiente para ocupar dois azulejos e meio. Sentia pés a tocarem-lhe na cabeça e os seus próprios pés encontravam-se à cabeça de outra pessoa. Tentou abstrair-se disso e adormecer.

Não conseguiu. Por mais que se esforçasse por dormir, o facto é que permanecia acordado. Que estava ali a fazer?, interrogava-se continuamente.

Como fora possível tudo aquilo ter acontecido?

Queria ir para casa, queria frequentar a madrassa, queria percorrer o souq em busca de clientes para a loja dos cachimbos de água, queria deleitar-se com a figura de Adara à hora do almoço na cozinha de Arif.

Por Alá, perdera tudo isso! E agora? Que seria da sua vida? Sentiu as lágrimas a inundarem-lhe os olhos e os soluços a escaparem-se-lhe pela boca.