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Tudo aquilo era culpa do governo, concluiu. Seria admissível que, no seu próprio país, um kafir fosse mais importante do que um crente?

Dava voltas e mais voltas no seu estreito lugar, o sentimento de injustiça a ensombrar-lhe o coração.

No tempo do Profeta, pensou, nada daquilo teria acontecido. Se levasse o seu caso directamente ao apóstolo de Deus, decerto Maomé não só o ilibaria de toda a culpa como o cumprimentaria por não ter deixado que um kafir o humilhasse! Quantos crentes haviam sido perdoados por terem morto muitos kafirun? Não seria ele, Ahmed, perdoado por ter defendido a sua honra? Não, em definitivo o governo estava nas mãos dos kafirun!

A certa altura sentiu a bexiga apertar e teve necessidade de urinar. Levantou-se e saltitou entre os corpos deitados até chegar junto da retrete. O

fedor a fezes era ali especialmente forte; havia uma nuvem de moscas a zunir em torno da latrina e Ahmed teve pena dos que estavam deitados naquela zona. Como era possível dormir ali? E verdade que junto à retrete havia mais espaço do que no resto da cela, o que não admirava: todos iam para o mais longe possível da imundice. Mesmo assim, e porque havia gente a mais, alguns não encontravam outro espaço que não fosse aquele.

Ahmed urinou longamente para o buraco fétido e, a tarefa cumprida, foi a saltitar de regresso ao seu lugar. Quando lá chegou, porém, percebeu que o seu espaço desaparecera, os corpos tinham-se encostado de modo a ocupar a vaga que deixara aberta.

Procurou noutro canto, mas era a mesma coisa. Não havia espaço. Andou de um lado para o outro, o desespero a crescer, mas estava toda a gente encostada, não havia azulejo visível que pudesse ocupar.

"Queremos dormir", protestou uma voz, incomodada com aquele vulto que andava por toda a parte.

"Não tenho lugar", queixou-se Ahmed.

Seguiu-se um coro de chius irritados.

"Vai-te deitar!"

O novo recluso olhou mais uma vez em redor, já desesperado. Foi então que percebeu como aquilo funcionava. Claro que havia espaço. Claro. Era onde se deitavam aqueles que não encontravam lugar.

Resignado, derrotado e horrorizado, Ahmed saltitou devagar entre os corpos por uma última vez e, com um esgar enojado, deitou-se no único espaço que havia disponível.

Ao lado da retrete.

Quando acordou na manhã seguinte, Ahmed iniciou uma rotina que se prolongaria enquanto estivesse na cadeia de Abu Zaabal. Os presos da sua cela foram arrebanhados pouco depois da oração do amanhecer e levados para a cantina, onde lhes foi servido o pequeno-almoço. Eram favas cozidas com pão. Logo nessa primeira manhã, ao mergulhar os dedos no empapado das favas, sentiu um objecto sólido escondido no meio da comida. Estranhou e extraiu o objecto do meio das favas.

"O que é isto?", perguntou, exibindo o que parecia ser um

pequeno tubo.

»

Os parceiros do lado, dois irmãos chamados Walid, riram-se.

"Uma beata", disse um deles.

Sem acreditar, Ahmed aproximou o tubo do nariz e cheirou. Tinha o odor a cinza e a tabaco; era realmente uma beata.

"Que porcaria!"

"São os guardas", acrescentou o outro irmão Walid, encolhendo os ombros. "Põem nojeiras na comida para nos chatearem..."

Ahmed aprendeu logo ali que as refeições em Abu Zaabal eram sempre uma caixinha de surpresas.

Podia não encontrar nada, como acontecera na véspera ao jantar, embora também houvesse sempre a possibilidade de aparecerem as coisas mais inesperadas. O mais comum eram pequenas pedrinhas ou areia misturada com comida, mas corriam histórias de reclusos que tinham ouvido guardas gabarem-se de escarrar para a panela quando estavam constipados.

O pior, porém, vinha a seguir ao pequeno-almoço.

Os presos eram levados para um pátio no segundo andar do edifício onde os guardas os obrigavam a correr às voltas, no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio. Se alguém abrandava era de imediato insultado e açoitado por um grande cinto nas mãos de um guarda. Ahmed não percebia o propósito daquela cena, mas corria como os outros e, também como os outros, levava uma ocasional vergastada.

Só ao final da manhã o grupo era reconduzido à cela. Não foram necessários muitos dias para Ahmed começar a encarar aquele reduzido espaço sobrepovoado, irrespirável e malcheiroso como uma bóia de salvação. O que quando chegou lhe parecia absolutamente insuportável foi-se-lhe afigurando pouco a pouco como um verdadeiro oásis. Já lhe haviam explicado que aquela cela fora concebida para vinte pessoas, mas estavam ali sessenta; a informação escandalizara-o na altura, mas já deixara de o chocar agora.

A cela tornara-se um refúgio.

Viveu cinco meses assim. Dormia mal, a comida não prestava, sofria com saudades da vida que perdera e de vez em quando era agredido pelos guardas.

Preencheu uma requisição especial e a família foi autorizada a enviar-lhe pequenas quantias de dinheiro, o que lhe permitia comprar cigarros, verduras, queijo e melancias na cantina. Como ninguém tinha faca, as melancias eram esmagadas contra o chão para poderem ser abertas.

Ao longo deste período a única coisa que o alegrou foi uma carta que recebeu de Arif. O antigo patrão endereçou-lhe uma missiva terna e calorosa, chamando-lhe meu filho e asseguran-do-lhe que no seu coração nada mudara e que o acordo que haviam feito três anos antes permanecia válido. Adara estava--lhe prometida e seria sua, acontecesse o que acontecesse.

Até que um dia, a meio de uma corrida em círculos no pátio com os guardas a vergastarem com os cintos os reclusos que se atrasavam, um funcionário da cadeia apareceu no local.

"Ahmed ibn Barakah!", chamou, lendo o nome num papel. Como ninguém respondeu, repetiu o nome, mas dessa vez mais alto: "Ahmed ibn Barakah!"

Ahmed arfava pesadamente, o rosto a escorrer suor e as roupas coladas ao corpo com a transpiração, e só à segunda chamada percebeu que era consigo. O que lhe quereriam dessa vez? Teria feito algum disparate? Iria ser sujeito a mais alguma punição? Ainda pensou em deixar-se ficar, em fazer--se despercebido, mas depressa concluiu que isso seria pior; se o viessem a castigar, castigá-lo-iam com .mais -durezft por desobediência.

Abrandou por isso, e, ofegante, apresentou-se diante do funcionário que berrara o seu nome.

"Sou eu", disse por entre golfadas de ar, o peito a inchar e a esvaziar-se. "Ahmed ibn Barakah."

"Vai à tua cela buscar as tuas coisas e apresenta-te dentro de cinco minutos no pátio central", ordenou, virando-se de imediato para o pátio de modo a continuar a chamada: "Mohammed bin Walid!"

Foi assim, sem perceber bem o que se passava, que Ahmed foi metido num carro celular, juntamente com outros oito reclusos, e pelas grades da janelinha viu o complexo prisional de Abu Zaabal ficar para trás. Vislumbrou o edifício da prisão, mas também o hospital e a escola, com a aldeia de Abdel Moneim Riad lá ao fundo, até que a nuvem de pó erguida pelo carro tudo tapou e os prisioneiros se acomodaram nos seus lugares.

Entre eles estavam os irmãos Walid.

"Será que nos vão libertar?", perguntou um deles, esperando contra a esperança.

"Não pode ser", disse Ahmed, mais para manter as expectativas baixas. "Ainda me falta cumprir pena."

"A mim também", disse o segundo irmão.

"E a mim", acrescentou um outro preso.

Depressa perceberam que todos os que iam no carro celular ainda tinham tempo para cumprir, o que lhes ensombrou a esperança. Se não era para os libertar, para que os haviam tirado de Abu Zaabal?