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"O que será que lhe querem?"

Ninguém foi capaz de responder.

"Vamos esperar para ver", sugeriu o mais velho do grupo.

A resposta foi dada duas horas depois, quando o seu companheiro reapareceu, ensanguentado e quase incapaz de falar. Foi nesse instante que perceberam que aquela era a ala dos interrogatórios.

Depois de ver o estado em que o preso viera e consciente do que o esperava, o segundo recluso a ser chamado resistiu e tentou escapar aos carcereiros. Foi espancado logo ali, à frente dos companheiros, e arrastado pelos cabelos para fora da cela.

"Já vais aprender a obedecer", rugiu um dos guardas que o levaram.

O segundo preso voltou horas depois numa maca.

Trazia alguns dentes partidos, os olhos inchados e as mãos ensanguentadas. Seguiu-se outro recluso e outro ainda, até que, já na madrugada do dia seguinte, Ahmed sentiu mais uma vez a porta da cela reabrir-se, dois guardas a entrarem e atirarem para o chão o homem que haviam acabado de interrogar, e aproximarem-se e pararem à sua frente.

"É a tua vez."

Como um autómato, quase sem sentir as pernas e com as mãos subitamente a tremerem-lhe, Ahmed ergueu-se do seu lugar e acompanhou-os para fora da cela. Caminhava num transe, sem pensar, sabendo o que o esperava mas entregando-se ao destino, resignado, como se deixasse a sua vida nas mãos de Alá Ar-Rabim Al-Halim Al-Karim - o Misericordioso, o Clemente, o Benévolo.

A sala estava caiada de branco, com poças de sangue no chão e manchas avermelhadas na parede.

Havia uma cadeira no centro, com correias para prender braços e pernas, e uma máquina eléctrica ao lado. Um homem gordo e ^transpirado, de aspecto brutal e com barba rala, aproximou-se dele.

"Despe-te!", ordenou.

Olhando de relance para a salinha, o coração aos saltos e todo o corpo a tremer quase em convulsões, Ahmed hesitou. "O que... o que me vão fa..." Paf.

Uma estalada violenta incendiou-lhe o

rosto. "Despe-te."

O preso tirou de imediato as roupas até ficar nu. O

homem gordo puxou-o pelo cabelo e obrigou-o a sentar-se na cadeira. Os guardas que o tinham ido buscar à cela apertaram-lhe as correias aos braços e às pernas, imobilizando-o no assento, e retiraram uns eléctrodos da máquina ao lado, fixando-os aos testículos de Ahmed. Quando terminaram, o homem gordo posicionou-se diante do recluso com uma grande pasta nas mãos.

"Como te chamas?"

"Ahmed ibn Barakah."

O homem abriu a pasta e folheou os papéis até encontrar o que queria. Parou e leu durante uns instantes

"Estou aqui a ler o teu dossiê", murmurou, enquanto percorria o documento com os olhos. "Diz aqui que és um radical." Fitou o preso com os olhos muito arregalados, como quem sabe a verdade e não admite que lhe mintam. "E verdade?"

O

coração

de

Ahmed

saltava-lhe

descontroladamente no peito. Sabia que tinha de responder a cada pergunta sem cometer uma falha, mas não percebia com exactidão o que lhe queria aquele homem. "É verdade?"

O preso engoliu em seco. Precisava de responder, mas tinha medo de falar, não fosse dizer a coisa errada.

"Eu... eu sou um crente", balbuciou por fim.

"Acredito em Alá Ar-Rahman Ar Rabim, o Beneficente e o Misericordioso. Sou testemunha de que não há nenhum Deus senão Alá, sou testemunha de que Maomé é o Seu profeta."

O homem gordo mudou a perna de apoio.

"Todos acreditamos em Alá e somos testemunhas de que não há nenhum Deus senão Alá", retorquiu, a voz no limite da paciência. "Mas aqui quem manda é Alá Al-Hakam, o Juiz, e o que eu quero saber é se és ou não um radical."

"Não sei o que é um radical", tentou Ahmed argumentar, num esforço para contornar a questão.

"Sou um crente, sigo as ordens de Alá no Alcorão e a sunnak do..."

Uma dor violentíssima subiu-lhe do ventre, como facas a dilacerá-lo; a dor era tão forte que o cegou, enchendo-lhe a visão de luzinhas. Contorceu-se na cadeira para tentar dobrar-se, mas as correias eram resistentes e mantiveram-no no seu lugar.

"Es ou não um radical?"

Percebeu que o espaço para negociar tinha terminado e decidiu que diria tudo o que lhe pedissem. "Sim... sim, sou um radical." "Pertences à Irmandade Muçulmana?" "Não."

A dor voltou, imensa e poderosa, e Ahmed quase perdeu os sentidos. Sentiu água fria ser-lhe despejada pela cabeça e, reabrindo os olhos, viu o homem gordo a mirá-lo.

"Pertences à Irmandade Muçulmana?", perguntou ele de novo.

"Não."

"Mas vinhas com eles de Abu Zaabal."

"Eu... eu vim com quem me puseram no carro. Nem sabia... nem sabia quem eles eram."

"Não os conhecias em Abu Zaabal?"

"Só... só de vista. Dois... dois deles eram da minha cela em

Abu Zaabal."

#

"Quem?"

"Os irmãos... os irmãos Walid."

O homem gordo consultou os documentos que tinha na mão e assentiu com a cabeça; pareceu aceitar a resposta. Porém, depressa ergueu de novo os olhos e fixou-os no recluso.

"E a Al-Jama'a alTslamiyya? Pertences a ela?"

Era uma pergunta muito perigosa, percebeu Ahmed. Uma facção da Al-Jama'a era a responsável pela morte de Sadat e todo o movimento se tornara objecto de cerrada perseguição pelo governo.

Qualquer associação sua a esta organização seria explosiva, devastadora.

Abanou a cabeça, enfático.

"Não. Não pertenço à Al-Jama'a."

Mais uma explosão de dor e de cegueira e de luzes.

O sofrimento era incrivelmente doloroso, como se mil facas pontiagudas o espetassem no corpo. Desta feita perdeu mesmo os sentidos.

Voltou a si com uma impressão fria e húmida na cara; tinham-lhe novamente atirado água à cabeça.

"Volto a perguntar: pertences à Al-Jama'a al-Islamiyya? Diz a verdade!"

"Não!" negou de novo, abanando veementemente a cabeça. "Não!"

O homem gordo apontou para os papéis que tinha nas mãos.

"Diz aqui que há testemunhas de que tinhas simpatias." "Quais... quais testemunhas? Não sei de nada, juro! Pelo Profeta, juro que não sei de nada!"

"Mentes!"

"É verdade! Não sou da Al-Jama'a! Juro!" "Não estiveste envolvido no martírio do presidente?"

"Eu?", surpreendeu-se Ahmed, arregalando os olhos horrorizados. "Claro que não! Claro que não!" "Podes prová-lo?"

"Eu... eu tinha doze anos quando isso aconteceu!

Claro que não estive envolvido!"

"Mas tinhas amigos da Al-Jama'a!"

"Eu tinha muitos amigos. Se calhar alguns eram da Al-Jama'a... não sei."

O homem folheou mais umas páginas, os olhos sempre a percorrer a informação ali registada.

"Dizem que te tornaste radical."

"Sou um crente. Sigo as instruções de Alá no Alcorão e a sunnah do Profeta. Se isso é ser um radical, sou um radical."

O interrogador voltou a estudar os documentos que tinha na mão e fixou a atenção na data de nascimento.

"Pois, nasceste em 1969, não foi?" Coçou os pelos da barba enquanto fazia as contas. "Realmente, tinhas apenas doze quando o presidente foi martirizado." Leu mais algumas linhas dos documentos e ergueu a cabeça quando descobriu algo que lhe despertou a atenção. "Olha lá, porque deixaste de frequentar a tua mesquita?"

Nesse instante Ahmed percebeu, surpreendido, que a polícia andara a investigá-lo com algum pormenor. Até haviam feito perguntas sobre ele na mesquita!

"Qual mesquita?", perguntou, sabendo muito bem a qual o seu interlocutor se referia mas procurando ganhar tempo para reordenar os seus pensamentos.