"A do teu bairro. Porque deixaste de ir lá?"
"Porque... porque não era o verdadeiro islão o que ali se ensinava."
O homem gordo levantou o sobrolho. *•
"Ai não? Então era o quê?"
"Era uma versão cristianizada do islão, uma versão feita para agradar aos kafirun. Aquilo não era o verdadeiro islão."
"Então o que é o verdadeiro islão?"
"E o que está no Alcorão e na sunnab do Profeta."
"Nessa mesquita não ensinavam o Alcorão e a sunnab}"
"Sim, claro", reconheceu. "Mas só uma parte. Havia coisas que não eram ensinadas."
"Tais como?"
"Que não devemos ser amigos dos Povos do Livro, por exemplo. É o que Alá diz no Alcorão e o que algumas pessoas que se afirmam crentes parecem querer ignorar. Ou que temos de emboscar e matar os idólatras onde os encontrarmos, tal como Alá ordena no Livro Sagrado. Nenhuma dessas coisas era ensinada nessa mesquita, o mullab fingia que não estavam lá."
O homem gordo respirou fundo e atirou os documentos para cima de uma mesinha. Depois olhou para os seus homens e fez com a cabeça um sinal na direcção de Ahmed.
"Levem-no e tragam-me outro."
XXV
Coff! Coff!
O cheiro ácido e penetrante da poluição penetrou-lhe nas narinas e invadiu-lhe os pulmões.
Tomás tossiu, aflito, e olhou lá para fora. Uma nuvem violeta erguia-se das ruas, pairando sobre os milhares e milhares de motos e automóveis que enchiam como formigas as artérias poeirentas de Lahore. O pior, percebeu, eram os auto-riquexós, cujos escapes exalavam rolos densos de fumo; pareciam chaminés de fábricas montadas sobre rodas.
Coff! Coff!
Os pulmões desfaziam-se em tosse.
"Por favor", pediu ao condutor, já a sentir-se asfixiar. "Será que pode fechar as janelas?" "Yes, mister'", assentiu o taxista.
O paquistanês rodou o manipulo até fechar a janela da sua porta e, com o carro sempre em movimento e uma mão ao volante, inclinou o corpo para o outro lado e começou a rodar o outro manipulo.
"Cuidado!", gritou Tomás ao ver o táxi ir na direcção de um auto-riquexó.
Uma guinada rápida evitou a colisão no último momento. O taxista voltou a cabeça para trás e exibiu os dentes amarelos, no que parecia ser a caricatura de um sorriso.
"Não se preocupe, mister. Aqui em Lahore é sempre assim."
0
As janelas ficaram fechadas e o interior do táxi pareceu enfim selado, uma caixa respirável no meio de uma nuvem incrivelmente vasta de poluição.
Tomás inspirou fundo, aliviado.
"Puf! Agora está-se bem melhor."
Olhou lá para fora e examinou o emaranhado urbano. Lahore era uma cidade plana e poeirenta, mas sobretudo caótica. Tinha o casario baixo, os edifícios cor-de-tijolo inacabados e uma permanente nuvem de smog a flutuar ao longo do horizonte irregular; a neblina era tão cinzenta que escurecia a manhã. A névoa de poluição nascia nas grandes artérias, todas elas muito movimentadas, e ascendia devagar para o firmamento até ficar a pairar como um espectro.
"O Zamzama é longe?", perguntou o cliente, impacien-tando-se.
A avenida onde o táxi se metera estava tão congestionada que parecia quase impossível avançar.
"Não, mister." A informação tranquilizou-o.
"Quanto tempo para chegar lá? Cinco minutos?
Dez?" O taxista riu-se.
"Não, mister. Da forma como o trânsito está, vamos levar pelo menos uma hora..." Tomás rolou os olhos.
"Oh, não!"
Recostou-se no assento, mentalizando-se para uma viagem lenta e demorada. Apanhado na armadilha daquele trânsito infernal, o táxi avançava aos solavancos. Não admirava que a viagem demorasse uma hora, percebeu. Só os últimos duzentos metros tinham levado uns dez minutos!
Sentia-se cansado depois de muitas ligações aéreas. Passara as últimas vinte e quatro horas a apanhar voos consecutivos, de Lisboa para Londres, onde não havia nesse dia ligação directa para o Paquistão; de Londres para Manchester, a tempo de apanhar o voo nocturno das linhas aéreas paquistanesas; de Manchester para Islamabade, onde desembarcara de madrugada; e finalmente de Islamabade para Lahore. Tinham sido ao todo quatro voos para ali chegar. O que valia, considerou, é que havia aproveitado todo aquele tempo para trabalhar.
Cerrou as pálpebras, tentando descontrair-se e descansar. Mas as imagens do trabalho que o ocupara ao longo dos voos invadiram-lhe a mente; eram tão obsessivas como aqueles jogos de computador que lhe permaneciam na retina depois de passar horas a jogá-los. Apesar de ter os olhos fechados, só via as letras e os números formarem combinações no escuro, como um imenso sudoku mental.
"Porra!", praguejou, abrindo os olhos.
Percebeu que não iria conseguir dormir enquanto não solucionasse o enigma no qual finalmente se embrenhara. Ren-dendo-se à evidência, inclinou-se no assento e abriu a mala de mão, de onde extraiu o bloco de notas. Folheou-o e voltou à linha que o assombrava sempre que cerrava as pálpebras.
6A7-H A 5 1 H A2R.U
Ao lado da linha, e nas páginas seguintes, multiplicavam-se as tentativas frustradas de quebrar a cifra. As coisas não estavam a resultar, percebeu. Talvez fosse melhor encarar a charada de uma forma nova. Tal como os criptanalistas da NEST, sempre partira do princípio de que se encontrava diante de uma cifra de grande complexidade, uma vez que os seus autores pareciam ter recursos de tal modo sofisticados qae até haviam conseguido ocultar a mensagem por baixo de uma imagem. Mas estaria mesmo no caminho certo?
Os seus consecutivos fracassos, e também os dos criptanalistas da NEST, constituíam um indício evidente de que estavam a cometer um erro.
E se mudasse de perspectiva? E se tentasse pôr-se no lugar dos homens que tinham enviado aquela mensagem? Melhor ainda, e se conseguisse compreender a posição do destinatário em Lisboa?
Coçou a cabeça, inteiramente absorvido naquele mistério.
A primeira coisa a notar era que a mensagem, embora tivesse sido enviada por muçulmanos, possivelmente por árabes, se encontrava redigida em caracteres latinos. Esse pormenor, raciocinou, não era despiciendo. Que leitura deveria fazer dele? Em primeiro lugar, isto parecia mostrar que o destinatário em Lisboa não tinha modo de abrir uma mensagem em caracteres árabes. Claro, tinha-a consultado num cibercafé, como descobrira a NEST, e era natural que o computador desse cibercafé não estivesse apetrechado com software para língua árabe. Fora por isso que a mensagem tivera de ser enviada em caracteres latinos.
Mas havia ainda uma outra conclusão a extrair deste facto. Quem enviara a mensagem não tinha manifestamente a noção de que o endereço do remetente se encontrava sob vigilância. Já Rebecca, aliás, o dissera. Assim sendo, e uma vez ocultada a mensagem por baixo da fotografia pornográfica, decerto que os terroristas não veriam necessidade de utilizar uma cifra muito complexa. Porque o fariam se se achavam em segurança? De resto, era até admissível que o destinatário em Lisboa não dispusesse de meios para decifrar uma mensagem que utilizasse um sistema demasiado sofisticado.
Posto o problema nestes termos, havia uma coisa que se tornava muito clara.
A cifra só podia ser simples.
Simples.
"É evidente...", murmurou Tomás, caindo em si.
"Como é que eu não vi isto antes?" "Perdão, mister}"
O português olhou aparvalhado para o taxista que o fitava pelo retrovisor, a mente mergulhada no enigma, os olhos momentaneamente presos no rosto do paquistanês, e levou um instante de perplexidade a perceber o que o homem lhe perguntara.