"Não é nada", disse, a atenção a voltar-se de novo para o bloco de notas. "Sou eu a falar para os meus botões."
Com movimentos frenéticos, pôs-se a ensaiar com a caneta soluções tradicionais para a mensagem. A chave deveria ser simples. Tentou a cifra de César, mas não obteve quaisquer resultados. Exercitou depois as cifras de substituição homófonas, também sem sucesso. Pegou num quadro de Vigenère e procurou aí a solução, mas mais uma vez falhou.
"Tenho de me pôr outra vez na posição de quem enviou e de quem recebeu a mensagem", sussurrou, pensativo.
Voltou a fixar os olhos na mensagem, como se a intensidade do olhar pudesse resgatar o segredo que ela escondia. Se o remetente era da Al-Qaeda, com toda a probabilidade estaria diante de um árabe. E o receptor também deveria ser árabe.
Mesmo que não fossem árabes, eram pelo menos muçulmanos
fundamentalistas,
o
que
obrigatoriamente significava que sabiam árabe, nem que fosse por terem memorizado o Alcorão. Ou seja, apesar de estar redigida em caracteres latinos, com toda a probabilidade a mensagem original encontrava-se em árabe.
Em árabe.
*
Ora o árabe escreve-se da direita para a esquerda!
Como diabo lhe escapara um pormenor desses?
Voltou a recorrer à cifra de César, às cifras de substituição homófonas e ao quadro de Vigenère, mas lendo os resultados no sentido inverso.
Novamente sem êxito. Suspirou, já desanimado. Num derradeiro fôlego, pôs-se a escrever a sequência de números e letras em tamanho gigante, como se através da ampliação pudesse extrair o segredo oculto na charada.
Desenhou as letras num tamanho descomunal, mas elas ficaram tão grandes que não couberam todas numa única linha do bloco de notas, pelo que teve de as repartir em duas linhas com dimensões iguais.
é A Y H A S 144 A 8
R U
"Seis-Aybas-Um-Ha-Oito-Ru?"
De repente, esta forma inesperada pareceu-lhe ter potencialidade. Da esquerda para a direita não fazia sentido. E da direita para a esquerda?
"Sahya-Seis-Ur-Oito-Ah-Um."
Também não.
A não ser que fossem coordenadas geográficas.
Ur, sabia-o, foi a primeira cidade do mundo. A escrita nascera aí. E Abraão também. Situava-se na Suméria, hoje Iraque, e tinha nas proximidades uma base aérea americana. Seria uma pista? Seria esta mensagem as coordenadas de um lugar? Seria a localização do sítio onde iria ocorrer um atentado?
Em Ur?
Era uma possibilidade, concluiu. Mas a separação dos algarismos, o seis de um lado, o oito de outro e o um numa posição solitária não lhe pareciam corresponder a coordenadas. Pôs-se então a imaginar rotas diferentes, que lograssem juntar os algarismos. A primeira vista só poderia conciliar o seis e o um, uma vez que um estava por baixo do outro, pelo que ensaiou uma rota a deambular entre a linha de cima e a linha de baixo. Começou num sentido, sem resultados, e depois ensaiou outro.
"Meu Deus..."
De boca aberta, a mensagem emergiu-lhe de repente diante dos olhos, poderosa e cristalina.
Pegou na caneta e, num frenesim nervoso, rabiscou com setas a rota do segredo que a cifra ocultara.
£ A-Y S t \ t \ t \
1~H A-8 RrU
"Descobri!", gritou.
O motorista quase deu um salto de susto.
"O quê? O que se passa?"
Percebendo que se tinha descontrolado no seu entusiasmo, Tomás corou, embaraçado.
"Nada! Nada!", garantiu, regressando ao presente.
Espreitou lá para fora. "Oiça lá, ainda falta muito?"
O carro passou ao lado de um pequeno campo ajardinado de hóquei e desembocou no início de uma grande avenida de
aspecto europeu, com um canhão oitocentista instalado no início.
"Chegámos."
O carro estacionou ao lado do passeio e pela janela Tomás viu uma mulher escultural junto ao canhão, o cabelo coberto por um lenço de seda cor-de-laranja.
Como se tivesse um sexto sentido, a mulher rodou o corpo na direcção do^táxi, tirou os óculos de sol e fitou-o com os seus olhos azuis brilhantes.
Era Rebecca.
XXVI
Ahmed chegou à cela arrastado pelos carcereiros, dorido no ventre e incapaz de caminhar. Mas, tirando as dificuldades de locomoção, vinha num estado incomparavelmente melhor do que todos os outros reclusos que haviam sido interrogados antes dele. E, outro pormenor que não passou despercebido aos seus companheiros de cela, o interrogatório não excedera a meia hora.
"O que aconteceu?", perguntou-lhe um dos reclusos que ainda não fora interrogado, algures entre a esperança e a desconfiança.
"Acho que ainda andam à procura de crentes envolvidos na matança do faraó", explicou Ahmed, numa referência ao assassínio de Sadat.
"E não estiveste?"
"Claro que não."
"Como os convenceste disso, meu irmão?"
"Eu tinha doze anos na altura."
Todos os elementos da cela acabaram por passar pelas mãos dos interrogadores e a grande maioria regressou quase inconsciente para junto dos companheiros. A primeira fase dos interrogatórios durou dois dias, seguindo-se mais dois dias em que ninguém os incomodou, o que permitiu aos mais maltratados recuperarem forças.
Ao quinto dia, porém, três carcereiros entraram na ç^la e um deles, depois de chamar pelo mais velho dos irmãos Walid, estendeu-lhe um frasco e uma colher.
"Toma duas doses deste xarope!"
Walid lançou um olhar interrogador ao frasco.
"O que é isso?"
"Toma!", rugiu.
Sabendo que não tinha modo de se opor àquela ordem, o recluso aceitou o frasco e engoliu duas colheradas do xarope. Quando terminou, os guardas permaneceram na cela, como se esperassem que o remédio fizesse efeito.
Alguns minutos mais tarde consultaram o relógio e deram uma nova ordem.
"Massaja-te nas partes baixas."
"O quê?"
"Faz o que eu te digo!", voltou a gritar.
"Massaja-te!"
O preso obedeceu e massajou-se, sem perceber bem o objectivo daquela ordem. Ao fim de poucos instantes parou, surpreendido com a enorme erecção que se lhe formara nas calças. Os carcereiros pareceram ter ficado satisfeitos com aquele resultado, pois logo sorriram entre eles antes de se voltarem de novo para o recluso.
"O teu irmão?"
Walid apontou para um homem que estava do outro lado da cela. "Está ali."
Um dos guardas foi buscá-lo e o que parecia ser o chefe ladrou a ordem seguinte. "Despe-te!"
Sem se atrever sequer a hesitar, o Walid mais novo tirou as roupas e ficou nu no meio da cela, os braços, as costas e o peito a exibirem as equimoses do interrogatório a que fora sujeito logo na primeira noite.
"Põe-te de gatas!"
O recluso baixou-se e ficou de gatas. Havia um silêncio pesado na cela; os outros reclusos quase nem se atreviam a respirar, com medo de atraírem as atenções sobre si. O chefe dos carcereiros olhou então para o Walid mais velho, que continuava com uma grande erecção a erguer-se das calças, e sorriu com malícia.
"Sodomiza-o!"
O preso arregalou os olhos, espantado com a ordem. "Como?"
"Es surdo ou quê?", gritou o guarda. "Sodomiza-o!"
Uma expressão de pânico encheu o rosto do Walid mais velho.
"Mas... mas... mas ele é meu irmão!"
O guarda deu um passo em frente, puxou o recluso pelo pescoço e apertou-o com tanta força que ele enrubesceu e deixou por momentos de respirar.
"Se voltas a questionar mais uma ordem minha, mato-te! Ouviste? Aperto-te o gasganete com força e mato-te!" Apontou para o irmão mais novo, que permanecia nu e de gatas no meio da cela.