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"Sodomiza-o!"

Encurralado e sem alternativas, o Walid mais velho baixou as calças e aproximou-se do irmão por trás.

Atónitos com o que se estava a passar na cela, Ahmed e os outros reclusos não sabiam o que fazer.

A maior parte voltou a cabeça para o outro lado, num esforço para não ver o que acontecia no meio da cela, mas os gemidos de dor e o choro convulsivo dos dois irmãos eram demasiado terríveis para serem ignorados. Foi nesse instante e naquelas circunstâncias que Ahmed percebeu onde realmente se encontrava. No último grau do inferno.

„. #

Dois dias depois da terrível cena que envolveu os irmãos Walid, os carcereiros voltaram à cela.

"Ahmed ibn Barakah!"

Ao ouvir o seu nome pronunciado por um dos guardas, Ahmed sentiu o coração dar um salto e começar a bater com força, como se quisesse saltar-lhe do peito.

"Sou eu."

"Acompanha-nos."

O recluso seguiu os carcereiros com o medo a anestesiar--lhe o corpo. Não era apenas a breve experiência de tortura que o assustava daquela maneira, nem o estado em que vinham os outros reclusos depois dos interrogatórios, mas sobretudo a humilhação a que vira os irmãos Walid serem submetidos. Se aqueles homens que geriam a cadeia haviam sido capazes de fazer aquilo, concluiu, não existia perfídia que não estivesse ao seu alcance.

Preparou-se, por isso, para o pior. Teria de ser forte, entregar o corpo ao destino e esperar que Alá Ar-Rasbid, o Guia, o conduzisse à salvação.

Acompanhado por dois guardas, Ahmed percorreu o mesmo corredor por onde o tinham levado quando fora interrogado dias antes, mas, em vez de entrar na sala do interrogatório, seguiu em frente até à porta que dava acesso àquela ala. Um dos homens desaferrolhou a porta e o recluso foi empurrado para além dela até chegar a um átrio. Conduziram-no pelas escadas para o andar inferior e levaram-no por um novo corredor até uma outra porta, que também abriram. "Entra."

Embora a medo, Ahmed obedeceu e cruzou a porta.

Era uma nova cela. Encontravam-se ali talvez uns quinze reclusos, mas todos tinham um ar bem mais saudável do que aqueles que deixara para trás.

Clac.

Ouviu o som metálico atrás de si e voltou-se. A porta da cela tinha-se fechado. O alívio encheu-lhe o corpo como o oxigénio preenche os pulmões e Ahmed tomou consciência de que havia abandonado a ala dos interrogatórios e fora transferido para uma ala normal.

A vida tornou-se consideravelmente mais fácil dali em diante. Nesta nova ala os reclusos eram autorizados todos os dias a fazer exercícios no pátio e até a jogar futebol. O quotidiano converteu-se assim numa experiência primeiro mais agradável, depois rotineira e por fim enfadonha. Quando não havia jogos nem outras actividades, Ahmed arrastava-se langorosamente pelo pátio, sem nada para fazer e com a eternidade por preencher.

Havia, porém, alguns momentos para os quais vivia.

Ahmed passou a receber a comida que a mãe lhe enviava duas vezes por mês e tinha até acesso a jornais, como o Al-Abram e o Al-Goumbouria, que os presos passavam de mão em mão. Foi assim que tomou conhecimento das últimas novidades sobre a sagrada guerra dos mudjabedin no Afeganistão, que Alá os protegesse e os acolhesse no Seu jardim, e dos pormenores mais revoltantes relativos à ocupação sionista do Líbano, que Alá os amaldiçoasse e os enviasse para o grande fogo. Ah, como gostaria de se juntar aos mudjabedin!

A sua solidão terminou justamente num dia em que estava sentado num canto do pátio da prisão a ler pormenores sobre uma grandiosa batalha envolvendo o Leão de Panjshir, o glorioso comandante Ahmed Shah Massoud, contra os kafirun russos que se haviam atrevido a pôr os pés imundos em terra islâmica. Quando ia a meio do texto, empolgado pela narrativa da vitória nessa batalha, desta feita em Jalalal^ade,

sentiu

uma

sombra

incómoda

projectar-se sobre o jornal.

Ergueu os olhos e vislumbrou um vulto plantado diante dele, o sol atrás a impedi-lo de distinguir as feições do intruso. Para se proteger da luz que o encandeava, pôs a mão sobre a testa como se fosse a pala de um boné e, a boca entreabrin-do-se de pasmo, reconheceu o homem que o fitava com um sorriso caloroso.

Era Ayman.

O professor de Religião que tanto influenciara Ahmed

na

madrassa

havia

envelhecido

consideravelmente em apenas três anos de cadeia. A barba farfalhuda tornara-se grisalha e Ayman apresentava um aspecto cansado, o corpo curvando-se já ligeiramente, as rugas a riscarem o canto dos olhos.

Mesmo assim, para Ahmed o encontro foi emocionante. Ao longo dos três anos anteriores interrogara-se muitas vezes sobre o que teria acontecido ao professor, como se encontraria ele, se estaria ainda vivo. Rezava amiúde a Alá para que protegesse o seu mestre e agora ali o tinha, mesmo diante de si, é certo que envelhecido e gasto, o corpo quebrado pela prisão, mas a chama do islão ainda lhe cintilava nos olhos; era ao mesmo tempo um recluso e um homem livre, o corpo confinado à prisão e a alma entregue a Alá.

"Que lhe fizeram eles, senhor professor?", perguntou depois da emoção do reencontro.

Ayman fez um gesto de amável reprimenda.

"Não me chames professor", disse. "Aqui não sou professor. Além do mais, já sabes o suficiente sobre o islão para seres tratado como um aluno."

"Então como lhe chamarei?"

"Irmão, como toda a gente. Somos ambos muçulmanos e Alá exige modéstia e pudor de todos nós. Chama-me irmão."

Ahmed sentiu dificuldade em chamar irmão ao antigo professor, de tal modo estava o hábito enraizado, mas tinha também consciência de que era uma questão de se ir acostumando.

"Sim... meu irmão."

Custou, mas lá o disse.

"Muito bem", aprovou Ayman. "Então conta-me, como vais tu?"

"Eu estou bem, mashaallab. Mas o que lhe fizeram eles, senhor profes... meu irmão?"

O antigo professor de Religião encolheu os ombros.

"Fizeram-me o que fizeram a todos os irmãos, que Alá os amaldiçoe para sempre! Torturaram-me."

Desabotoou a camisa e mostrou equimoses no peito.

"Bateram-me, deram-me

choques eléctricos,

penduraram-me como carne num açougue." Estendeu as mãos e exibiu as pontas dos dedos deformadas.

"Arrancaram-me as unhas uma a uma, que Alá os leve para o Inferno!"

Ahmed olhou impressionado para os dedos estropiados e abanou a cabeça, mal contendo a fúria que lhe fervilhava no sangue.

"Também a mim me torturaram, esses cães malditos!" "O que te fizeram?" "Deram-me choques." "E mais?"

"Acha pouco?"

Ayman balançou a cabeça de um lado para o outro, como se dissesse que poderia ter sido pior.

"E agora que já passaste pela tortura?

Ganhaste-lhes medo?"

O jovem encarou o seu antigo professor com uma expressão escandalizada, como se tivesse acabado de ser insultado.

"Medo, eu? Claro que não!"

*

"E então?"

Ahmed tremia.

"Odeio-os!

Odeio-os!

Como

podem

eles

comportar-se assim? Como podem eles fazer-nos isto?" Cuspiu para o chão, num gesto de desprezo.

"Estes cães envergonham o islão! Onde já se viu um crente punir outro crente para proteger os kafirun?"

"Esta gente do governo fez a shabada e pratica o salat", disse o antigo professor, "mas não é crente."

"São cães raivosos!"