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Mirando o arame farpado enrodilhado sobre os muros em torno do pátio da cadeia, Ayman fungou com força e lançou um escarro para o chão, num gesto de profundo desprezo.

"Pior do que isso", sentenciou. "São kafirun!"

XXVII

"Alguma vez leu Kipling?", perguntou Rebecca.

"Claro, não se esqueça de que sou historiador..." A americana pousou a mão no cobre trabalhado da peça de artilharia que dominava a grande avenida. "Então já conhece o Zamzama."

Os olhos verdes de Tomás deslizaram das grandes rodas laterais para a arma que elas sustentavam.

"«Quem controla o Zamzama controla o Punjabe», escreveu Kipling a abrir o seu maior romance, Kim."

Ergueu a atenção para ela. "Isso é mesmo verdade?"

Rebecca sorriu, como se não houvesse resposta para a pergunta, ou como se não a soubesse, ou talvez como se ela nem sequer fosse importante, e fez um sinal com a cabeça na direcção do lado esquerdo da avenida.

"Vamos! Temos muito trabalho a fazer."

Atravessaram o The Mali em direcção ao museu de Lahore, uma bela construção em estilo neomogul que Tomás logo

admirou. Estavam em pleno Raj britânico. Neste sector da cidade tudo era grandioso e imponente, com a grande avenida a separar Lahore como um rio majestoso, de um lado o belo museu naquele estilo neomogul à Taj Mahal, do outro a Universidade do Punjabe, os dois lados da avenida com amplos passeios e espaços verdes, tudo muito bem ordenado e arejado, num flagrante contraste com o caos e a p»luiçã(f com que se confrontara ao entrar na cidade.

"Sabe", disse Tomás, "já quebrei o segredo da charada que vocês interceptaram."

"A sério?"

Apesar de caminhar ao longo do passeio, o historiador abriu a mala de mão e procurou o bloco de notas.

"É verdade. Passei a viagem toda à volta dela e consegui descobrir a cifra utilizada pela Al-Qaeda para ocultar a mensagem."

"E o que diz ela?"

"A mensagem? Ainda não cheguei lá, mas apenas por falta de tempo. O facto é que já..."

Rebecca consultou o relógio e ergueu a mão, travando-o.

"Agora não temos tempo para isso", disse, a voz baixa e tensa. "São dez da manhã e o encontro com o seu ex-aluno é daqui a duas horas. Temos muita coisa com que preocupar--nos neste momento. A charada fica para depois."

Travado no seu entusiasmo, Tomás calou-se e deixou-se guiar pela americana, os olhos de historiador perdendo-se pela arquitectura imperial daquela parte da cidade.

As fachadas dos edifícios estavam degradadas, era certo, mas cintilava ali ainda com esplendor a grande jóia arquitectónica do Raj. Olhando para o The Mali era possível viajar no tempo e recuar às indolentes tardes de cricket, com os gentlemen a encherem os passeios pela avenida, as ladies com pequenas sombrinhas a protegê-las, os The Times com semanas de atraso dobrados por baixo dos braços, os cavalos e as charretes a percorrerem a estrada com os seus clip-clops característicos, as figuras de laço ou gravata a entrarem nos clubs para o tea time com scones e as conversas em torno do great imperial game, as mensabib vestidas com... "É

aqui."

A voz de Rebecca desfez a imagem do Raj em Lahore e trouxe Tomás de regresso ao presente. A americana parara ao lado de urna grande carrinha azul estacionada junto ao passeio.

Uma nave espacial.

Foi essa a impressão que teve quando pôs o pé no interior da carrinha. Vista de fora, a viatura apresentava a chapa envelhecida e amolgada em alguns pontos, com o azul da pintura já algo esbatido e meio coberto por uma densa camada de poeira e por espessas manchas de lama. Os pneus estavam quase carecas e, em bom rigor, a única coisa que distinguia a carrinha das carcaças ambulantes que atafulhavam o trânsito de Lahore era o vidro escuro, colocado aparentemente para proteger os ocupantes do calor escaldante do Punjabe.

Considerando o aspecto exterior tão degradado, Tomás esperava um interior sujo e desarranjado, se calhar até com buracos nos assentos, pelo que, ao entrar, experimentou um sentimento de absoluta irrealidade. O ambiente era escuro e fresco, cheio de ecrãs de LCD e alta tecnologia, um aroma sofisticado a pairar no ar. O contraste com as suas expectativas era tal que duvidou dos sentidos.

Aquela não podia ser a carrinha desmazelada que vira ainda instantes antes! Decerto que se enganara!

"Howdy!"

A voz masculina veio da dianteira da carrinha. Ou, em rigor, do cockpit. Esforçando-se por habituar os olhos ao escuro, Tomás distinguiu duas figuras ali dentro. Eram dois homens na casa dos vinte anos, de camisa clara e gravata, e com enormes auscultadores a abraçar-lhes a cabeça.

"O meu nome é Jarogniew", disse um deles,,volta»do-se para trás e estendendo a mão para o cumprimentar. "Mas eles chamam-me Jerry, é mais fácil. Como vai isso?"

"Eu sou o Sam", disse o outro, imitando o gesto do seu parceiro.

O recém-chegado apertou-lhes as mãos.

"Eu sou o Tomás", identificou-se.

"No shit, Sherlock!", sorriu Jarogniew. "Pensámos que você era o fucking Bin Laden!"

Riram-se os dois numa grande algazarra e Tomás juntou--lhes o seu sorriso, mais por cortesia social do que por ter achado realmente graça.

"Rapazes! Rapazes!", disse Rebecca, que entrara também na carrinha e acabara de fechar a porta.

"Tenham juízo e portem-se bem! O que vai o nosso convidado pensar?"

"Sim, Maggie", respondeu Jarogniew, claramente o mais brincalhão. "Partimos agora, boss?"

"Sim."

Jarogniew ligou a ignição e a carrinha arrancou bruscamente, atirando os ocupantes de encontro aos assentos. Rebecca sorriu e voltou o rosto para o português.

"Não lhes ligue, Tom. Estão sempre na brincadeira, mas pode confiar neles. São os melhores operacionais que temos no Paquistão."

"Eles chamaram-lhe Maggie?"

A americana encolheu os ombros.

"Oh, não faça caso."

"Afinal você chama-se Maggie ou Rebecca?" "Não é isso. Eles têm a mania de que eu me pareço com a Meg Ryan..."

Tomás encarou-a com atenção e observou melhor os grandes olhos azuis e o cabelo loiro curto da mulher sentada ao seu lado.

"Não está mal visto", reconheceu. "Dá realmente um certo ar."

"Acha?"

"Claro que você é mais bonita", apressou-se a acrescentar. "Se quer que lhe diga, a Meg Ryan nem lhe chega aos calcanhares..."

Rebecca soltou uma gargalhada.

"Ai esse sangue latino! Mister Bellamy bem me avisou! Tenho de ter cuidado consigo!"

"E eu? Tenho de ter cuidado com quem?"

O olhar da americana desviou-se para as ruas que desfilavam lá fora. A carrinha acabara de sair do The Mali e entrava no sector paquistanês de Lahore.

"Você tem de ter cuidado com o que se passar no forte", disse ela, mudando o tom ligeiro da conversa.

"Esta gente não é para brincadeiras."

"E quem me vai proteger? Você?"

"Claro." Fez um sinal para os dois homens sentados na dianteira. "E eles."

A atenção de Tomás transferiu-se para os homens da frente.

"A NEST tem operacionais no Paquistão?"

"Não. O Jerry e o Sam trabalham na nossa embaixada em Islamabade. Digamos que eles nos foram emprestados para esta operação. Está a ver ali o Jerry?"

Tomás observou o homem que conduzia a carrinha.

Jarogniew era gordo e tinha uma careca reluzente, com cabelo apenas por trás das orelhas.

"Sim."

"E o nosso perito em comunicações. Os avós vieram da Polónia, mas o seu país é agora esta carrinha. Ele monta sistemas de comunicações e faz vigilância operacionak Se houver alguma anomalia, o Jerry será o primeiro a detectá-la."