Выбрать главу

"Sim, meu irmão", sussurrou, a voz num fio. "Tem razão. Desculpe. Rogo o seu perdão."

O recuo do pupilo acalmou Ayman. O antigo professor de Religião ergueu os olhos e varreu o céu com a mão.

"Por detrás do universo existe uma Lei que o regula, uma Força que o move, uma Vontade que o ordena", disse, a voz já mais controlada. "Em nenhum instante é possível desobedecer à Vontade e à Lei Divina. As estrelas, a Lua, as nuvens, a natureza, tudo se submete à Sua Lei e à Sua Vontade e é assim que o universo encontra a sua harmonia." Indicou os reclusos que se encontravam no pátio. "Ora o homem é parte deste universo e, assim sendo, as leis que o governam não são diferentes das leis que governam o universo. Da mesma maneira que Alá criou leis que regulam o universo, Ele criou leis que regulam o homem. Os seres humanos têm de obedecer à Lei Divina para estarem em harmonia com o universo e em paz consigo mesmos. Se, em vez de o fazerem, cederem às suas tentações e instintos e rejeitarem a sharia, então entrarão em confronto com o universo e aparece a corrupção e todos os problemas que estamos a ver no islão e no mundo. Está claro isto?"

"Sim, meu irmão."

"O islão é a declaração de que o poder pertence a Deus e a Deus apenas. Os kafirun são livres de escolher a sua religião, mas essa liberdade não significa que se podem submeter a leis humanas.

Qualquer sistema instituído no mundo tem de ter a autoridade de Alá e as suas leis têm de emanar da Lei Divina. É sob a protecção deste sistema universal que cada indrVíduo é livre de adoptar a religião que quiser. Mas lembra-te: quem usurpar o poder divino tem de ser afastado. Esse afastamento é feito através da pregação ou, quando se levantam obstáculos, através da força. Ou seja, com recurso à jihad."

Ahmed abanou a cabeça, frustrado.

"Não foi nada disso que o xeque Saad me ensinou durante tantos anos. Ele dizia que a jihad era apenas defensiva e que..."

"Isso é conversa de cobardes que têm medo de assumir as consequências das ordens de Alá no Santo Alcorão ou da sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele", cortou Ayman, agastado. "Fingem que não está lá o que manifestamente está lá! Os kafirun cristãos distorcem o conceito de jihad, insi-nuando que ela impõe a tirania. Bem pelo contrário, a jihad liberta os homens da tirania. E esses cobardes que se dizem crentes ficam tão embaraçados diante dos kafirun cristãos que se põem a argumentar que a jihad é meramente defensiva e exibem os versículos já ab-rogados como suposta prova." Inclinou a cabeça. "Quando o teu mullah falava em jihad defensiva estava a referir-se à defesa de quê?"

"Bem... das terras do islão, suponho eu."

"Que vergonha! Como é possível que ele tenha sugerido isso? Quem diz tal coisa está a diminuir a grandeza do islão e a dar a entender que as terras são mais importantes do que a fé. A jihad só é defensiva no sentido em que defende o homem e o liberta dos grilhões de outros homens. Só nesse sentido é ela defensiva. De resto, a ordem de Deus é a de espalhar a Lei Divina por toda a humanidade! E

como se faz isso? Só a pregar? Claro que não!

Teríamos de ser muito ingénuos para pensar que as sociedades jahili aceitariam pôr as suas leis de acordo com a Lei Divina, de modo a viabilizar um clima de liberdade que permitisse que os kafirun escolhessem a religião que querem sem constrangimentos. E por isso que a jihad é necessária. A jihad não se destina a defender terras, destina-se a impor a Lei Divina!"

Ayman inclinou-se no seu lugar e varreu o chão do pátio com as palmas das mãos até fazer um pequeno monte de areia. Depois pegou num pedaço de areia e ergueu-o.

"Quanto achas que vale isto?"

Ahmed fitou a areia que se escapava em grãos por entre os dedos do mestre.

"Sei lá... nada, acho eu."

"Nada", ecoou Ayman, limpando as mãos uma à outra para se desfazer da areia. "Ou seja, as terras em si não têm valor. O islão procura a paz, mas não uma paz superficial que se limite a garantir a segurança das suas terras e das suas fronteiras. O

que o islão procura é a paz mais profunda de todas: a paz de Deus e de obediência a Deus apenas. Enquanto essa paz não existir, teremos de lutar por ela. A luta faz-se através da pregação e, quando necessário, da jihad. Há algum verdadeiro crente que, depois de ler o Santo Alcorão e de conhecer a sunnah do Profeta, que a paz esteja com ele, pense que a jihad diz apenas respeito à defesa das fronteiras? Deus diz no Livro Sagrado que o objectivo é limpar a corrupção da face da Terra! Se fosse a defesa das fronteiras, Ele tê-lo-ia dito. Mas não disse. A jihad não é pois uma mera fase temporária, mas uma etapa fundamental que existe enquanto existir

jahiliyya entre os homens. É obrigação do islão lutar pela liberdade do homem até que todos se submetam à Lei Divina. O destinatário do islão é toda a humanidade e a sua esfera de acção é o planeta inteiro. Ou os kafirun se convertem ou pagam a jizyab. São essas as ordens de Alá e é para isso que existe a jihad."

"Sim, meu irmão."

*

Ayman recostou-se no seu lugar e fixou o olhar no firmamento.

"Se os kafirun não o fizerem, terão de ser mortos."

XXXI

Crrrrrr. "Bluebird:'

A voz rasgou o ar com a sua tonalidade eléctrica, enxameada pelo ranger raspado da estática.

"Bluebird, está a ouvir-me?" Crrrrrr.

Tomás ajeitou o aparelhinho que lhe haviam instalado no ouvido, tentando melhorar as condições de recepção. "Isso é comigo?", perguntou o historiador.

"Sim", confirmou a voz. "Está a ouvir-me bem?"

"Muito bem." Crrrrrrr.

A estática voltou.

"Já localizou o Charlie}", perguntou Jarogniew no auricular, quebrando mais uma vez a estática. "Qual Charlie}"

"O tipo com quem se vai encontrar, já lhe expliquei aqui na carrinha. Você é o Bluebird, ele é o Charlie."

O historiador olhou em redor, tentando reconhecer algum rosto na praça. Havia muita gente a circular por ali; eram sobretudo muçulmanos mas nenhum parecia o seu ex-aluno.

"Não, ainda não vi o Zacarias."

"Fuck!", protestou Jarogniew. "Não use o nome verdadeiro, goddam it! Ele é o Charlie, já lhe disse."

Tomás fez um estalido impaciente com a língua.

*

"Mas que charada mais absurda!", reclamou, revirando os olhos. "Qual é o problema de o chamar pelo nome? Para quê esses códigos idiotas? Isto é algum filme? Eu tenho cara de 007? Que palhaçada vem a ser esta?"

"Segurança."

"Segurança de quê?"

"Jesus! Odeio trabalhar com amadores porque só fazem disparates", resmungou Jarogniew, rangendo os dentes de impaciência. "Oiça, Bluebird, você tem de perceber que os tipos com quem estamos a lidar têm acesso a tecnologia. Se eles souberem deste encontro é muito natural que monitorizem as frequências de rádio. Se o fizerem vão dar connosco.

Por isso aconselho-o a usar os nomes de código que eu lhe dei aqui na carrinha. Entendeu?"

O historiador suspirou, submetendo-se sem estar inteiramente persuadido.

"Sim."

Crrrrrr.

Olhou mais uma vez em redor. O forte de Lahore parecia--lhe um oásis tranquilo aberto no meio do inferno urbano. Apesar disso, na praça junto à entrada do forte havia muito movimento; eram os crentes a sair da mesquita Badshahi, uma das maiores e mais belas do mundo, elegante com os seus quatro minaretes e situada mesmo do outro lado da praça. O forte e a mesquita estavam construídos no imponente estilo mogul, caracterizado pelas paredes grossas, pela pintura vermelha atijolada, pelas cúpulas largas que lhe lembravam as stupas tibetanas. Eram linhas arquitectónicas soberbas, o que não o surpreendia; no fim de contas, o estilo mogul criara a grandeza do Taj Mahal.