"E os governos desses países? Que pensam eles?"
"Há de tudo, como sabe. Mas aqueles que não são fundamentalistas nem conservadores estão sob a mira de parte das suas próprias populações."
"Porquê?"
"Por estarem a violar a sharià", observou o historiador. "A lei islâmica requer, por exemplo, que se apedreje uma adúltera até à morte, na sequência do que já vem exigido no Antigo Testamento. Só que isso, como deve calcular, choca com a moral ocidental. Não foi Jesus que disse, em defesa de uma adúltera: «Atire a primeira pedra quem nunca pecou»? Acontece que há governos muçulmanos que estão $ob influência da cultura ocidental e estabeleceram penas mais leves para este tipo de crimes. Mas não foi Maomé que ordenou a lapidação até à morte das adúlteras? Se um governo é muçulmano, porque não executa essa ordem do Profeta?
Estas duas perguntas são muito complicadas e põem estes governos em xeque."
"As populações muçulmanas acham que se deve lapidar uma adúltera até à morte?" "Muita gente acha, sim."
"Está bem, mas isso é o o povo ignorante a falar..."
"Está enganada! Muitos muçulmanos instruídos e esclarecidos são fundamentalistas. Repare que a principal característica de um fundamentalista islâmico é a sua vontade de respeitar integralmente, e com verdade, o islão. Se o Alcorão manda rezar cinco vezes voltado para Meca, ele reza. Se o Alcorão manda dar esmolas aos pobres, ele dá. Se o Alcorão manda cortar a mão aos ladrões, ele corta.
Se o Alcorão manda matar os infiéis que não aceitam ser humilhados com o pagamento da taxa discriminatória, ele mata. É tão simples quanto isto.
Para um fundamentalista não há zonas cinzentas. O
que o Alcorão e o Profeta dizem para fazer é para ser feito e corresponde ao bem. Os que não obedecem ao Alcorão e ao Profeta são infiéis e estão ao serviço do mal. Mais nada. Os muçulmanos encontram-se no reino da luz e os infiéis mergulhados na treva."
"Tudo isso já eu sei", disse Rebecca. "Mas como é possível que essa gente não evolua com o tempo? E
isso que não percebo!"
"Não percebe porque não conhece a história do islão", atalhou Tomás. Dobrou-se no assento e retirou um mapa do saco de viagens que tinha aos pés. Abriu o mapa no regaço e apontou direcções.
"Repare, desde o tempo de Maomé que os muçulmanos se habituaram a estar na ofensiva e a dominar os outros povos. Espalharam-se rapidamente pelo Médio Oriente e pelo Norte de Africa, usaram a força para ocupar a índia, os Balcãs e a Península Ibérica e chegaram a atacar a França e a Áustria."
"Mas sempre ouvi dizer que as relações dos muçulmanos com as outras religiões eram pacíficas..." "Quem lhe disse isso?"
"Li num artigo qualquer. Dizia lá que as cruzadas é que abriram as hostilidades entre cristãos e muçulmanos." Tomás riu-se.
"Isso é conversa da treta! As cruzadas constituíram o primeiro esforço dos cristãos de abandonarem a defensiva, após quatro séculos consecutivos a serem atacados! Foi só com as cruzadas que os cristãos se ergueram contra os muçulmanos e passaram à ofensiva." O dedo de Tomás indicou outros pontos do mapa. "As cruzadas marcaram a primeira resposta dos cristãos aos contínuos ataques dos muçulmanos. Para além da reconquista da Terra Santa, os cristãos recuperaram a Península Ibérica e, com os Descobrimentos portugueses, começaram de repente a espalhar-se pelo mundo. De um momento para o outro apareceram impérios europeus por todo o planeta. Até pequeníssimas potências como Portugal ocuparam áreas de poderio islâmico, como partes da índia e o estreito de Ormuz, chegando até a erguer fortes em plena Arábia, terra que o Profeta, antes de morrer, dissera que só podia ser ocupada por muçulmanos. Apesar da espantosa expansão europeia, o islão manteve o objectivo declarado de conquistar toda a Europa e fez uma derradeira tentativa de retomar a ofensiva atacando de novo o Sacro Império Romano no século xvü, mas o segundo cerco de Viena fracassou e ps exércitos islâmicos bateram em retirada. Foi a consumação do descalabro. Seguiu-se derrota atrás de derrota, até que os europeus entraram em pleno coração do islão."
"No século xix", atalhou o americano.
"Antes", corrigiu Tomás. "Napoleão invadiu o Egipto em 1798. Como deve calcular, os muçulmanos ficaram em estado de choque. E o pior foi constatar que quem expulsou os infiéis franceses do Egipto não foram os exércitos islâmicos, como seria de esperar, mas uma pequena esquadra britânica. O islão percebeu nesse momento que as potências europeias podiam invadir a seu bel-prazer as suas terras e, para cúmulo, só outras potências europeias tinham capacidade de as desalojar!"
"Bem, de certa forma houve aí uma justiça poética, não acha?", observou Rebecca. "Os muçulmanos passaram séculos a comportar-se como imperialistas e a invadir país após país. Alguma vez tinham de provar o fruto que antes impunham aos outros..."
"Visto sob esse prisma, é verdade. Só que eles descobriram que esse fruto era até muito amargo, uma vez que a expansão europeia em território islâmico se acentuou no século xix, com os Britânicos a ocuparem Aden, o Egipto e o Golfo Pérsico e os Franceses a colonizarem a Argélia, a Tunísia e Marrocos. O auge deste processo ocorreu com a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial. A Grã-
Bretanha e a França abocanharam todo o Médio Oriente, com os Britânicos a ficarem com o Iraque, a Palestina e a Transjordânia e os Franceses a dominarem a Síria e o Líbano. O símbolo desse domínio ocidental sobre o islão foi a abolição do califado otomano, em 1924."
"Está bem, mas isso é tudo história!", contra-argumentou Rebecca. "Que eu saiba todos esses países já recuperaram a independência. Além do mais, quem aboliu o califado foram os próprios Turcos, não foi o Ocidente..."
O historiador dobrou o mapa e guardou-o de novo no saco de viagem.
"Acha que é tudo história? Olhe que os muçulmanos não vêem a coisa assim. Nós, os ocidentais, encaramos a história como uma coisa que já passou e que não deve condicionar-nos. E, mais uma vez, a cultura cristã que nos orienta, mesmo que não nos apercebamos disso. Mas os muçulmanos não são cristãos e olham para as coisas de maneira diferente. Encaram acontecimentos de há mil anos como tendo acontecido agora!"
"Lá está você a exagerar..."
"Quem me dera! Eu sei que para nós tudo isto parece estranho, mas o passado para os muçulmanos tem uma importância desmesurada, eles encontram aí orientação religiosa e legal. No fundo os muçulmanos acham que o passado reflecte os propósitos de Deus e por isso toda a história é muito actual. Daí que a colonização dos países islâmicos pelos europeus os choque acima de tudo."
"Mas já lhe disse que eles recuperaram a independência há muito tempo!", insistiu Rebecca.
"Tanto quanto sei, a maior parte desses países libertou-se dos colonizadores entre 1950 e 1970..."
"E verdade, mas para eles é como se tudo tivesse ocorrido ontem. Repare que o islão foi a principal civilização do planeta na altura em que o cristianismo estava mergulhado na Idade Média. Os muçulmanos habituaram-se a encarar-se a si próprios como os guardiães da verdade divina e viam a sua supremacia como uma consequência natural e lógica disso mesmo.
Mas eis que, de repente, se viram confrontados com a reconquista cristã, com as consequências dos Descobrimentos portugueses e com a idade das luzes- e, de um momento para o outro, aperceberam-se de que o Ocidente passou a mandar no mundo. Os infiéis ocidentais, até aí na defensiva, tornaram-se senhores do planeta e chegaram ao ponto de colonizar os países islâmicos! A capital do califado, Istambul, pôs fim ao próprio califado e, por decisão de Atatürk, passou a imitar a cultura e o sistema secular dos infiéis ocidentais, separando a religião do Estado. Como acha que os muçulmanos encararam esta transformação?"