"Imagino que não tenham gostado muito..."
"Claro que não gostaram! E, para agravar as coisas, o contraste entre a qualidade de vida das duas civilizações tornou-se gritante. Muitos muçulmanos começaram a comparar as suas vidas com as dos ocidentais e isso fê-los questionarem--se. Por que razão viviam os países islâmicos na pobreza e tinham governos tão corruptos? Porque motivo estavam tão atrasados em relação ao Ocidente? Por que diabo não conseguiam eles também fabricar belos automóveis e voar até à Lua? Incapazes de fazer frente ao domínio tecnológico e financeiro do Ocidente, esses muçulmanos concluíram que só conseguiriam responder na área cultural. E o que havia aqui? O islão! Não foi o islão que dominou o mundo, da índia até à Península Ibérica? Não tinha Maomé em poucos anos criado uma grande civilização? Como fizera ele isso? A resposta era: respeitando integralmente a lei islâmica. Logo, a resposta para os problemas de hoje também podia ser a mesma. Muitos começaram a achar que o problema é que haviam abandonado a verdadeira fé e passaram a acreditar que, se respeitassem de novo todos os preceitos do islão, o esplendor de outrora regressaria em força."
"E foi isso que os atirou para o fundamentalismo."
"Exactamente! Quando um muçulmano diz que se sente humilhado pelo Ocidente, não está a dizer que o Ocidente o maltrata. O que está a dizer é que é humilhante ver o Ocidente superiorizar-se ao islão nos planos económico, cultural, tecnológico, político e militar. O pecado do Ocidente é mostrar-se mais poderoso do que o islão. Daí ao raciocínio seguinte é um mero passo. Muitos muçulmanos acham que, se rejeitarem a modernidade e respeitarem à letra os preceitos do Alcorão e o exemplo do Profeta, a glória e o domínio do islão em todo o mundo voltarão."
"E foi isso que os fundamentalistas começaram a defender depois da queda do califado otomano..."
Tomás fez um trejeito com a boca.
"Na verdade este retorno aos fundamentos do islão começou com um xeque medieval chamado Ibn Taymiyyah, que defendeu a interpretação literal do Alcorão e do exemplo de Maomé, e foi sobretudo relançado no século xvni, no rescaldo do choque da invasão napoleónica do Egipto. Nessa altura apareceu na Arábia um teólogo chamado Al-Wahhab que, inspirado em Ibn Taymiyyah, rejeitou as inovações feitas ao longo do tempo e preconizou o regresso do islão às suas fontes mais originais, o Alcorão e a sunnah do Profeta, estabelecendo a jihad como um dever fundamental dos muçulmanos. Al-Wahhab declarou que todos os muçulmanos que não respeitavam o islão à letra eram infiéis e aliou-se a um emir tribal chamado ibn Saud. Juntos, os dois conquistaram o que é hoje a Arábia Saudita e criaram uma dinastia que ainda agora governa o país.
Os Saud mantêm-se como chefes políticos e os descendentes de Wahhab como líderes religiosos.
Mas o que é importante perceber é que é aos wahhabistas que está hoje entregue a gestão das madrassas e das universidades." "O quê?!"
"A sério. A educação saudita assenta hoje no fundanfenta-lismo mais primário que possa existir.
Está a ver o problema que isso cria, não é verdade?
O controlo pelos wahhabistas do sistema de ensino saudita significa que o islão que os sauditas aprendem desde pequenos na escola é o islão da jihad, da matança dos infiéis, da mutilação dos ladrões, dos apedrejamentos das adúlteras até à morte... e por aí fora. E como se isto não bastasse, no século xx apareceu o petróleo!"
Rebecca fez uma careta.
"O que tem o petróleo a ver com isto?"
O historiador esfregou o polegar e o indicador.
"Dinheiro", explicou. "O petróleo enriqueceu os Sauditas. De repente os wahhabistas ficaram cheios de dinheiro e imagine o que decidiram eles fazer?"
"Ergueram grandes mesquitas?"
Tomás soltou uma gargalhada.
"Também", disse. "Mas, sobretudo, puseram-se a financiar madrassas em,todo o mundo islâmico, assumindo o controlo da matéria pedagógica nelas ensinada."
"Meu Deus!"
"Pois é, pois é! De repente as escolas espalhadas pelo mundo islâmico e financiadas pelos wahhabistas sauditas puseram-se a ensinar por toda a parte o islão da jihad! Essas madrassas tornaram-se autênticos viveiros de fundamentalistas, com os novos currículos educativos a pregarem o regresso ao século vil, a defenderem a matança dos infiéis e a rejeitarem a modernidade, dizendo que o retorno ao islão original poria os muçulmanos de novo na vanguarda."
"Mas isso não faz muito sentido! Como é que rejeitar a modernidade os põe de novo na liderança?
Não percebo..."
"Oiça, tem de entender que esta mensagem de regresso às origens os apanhou num momento de vulnerabilidade, em que muitos muçulmanos se sentiam humilhados pelo colonialismo e cidadãos de segunda classe na sua própria terra..."
"Mas não era isso justamente o que eles faziam aos cristãos, aos judeus e aos hindus? Não andaram eles séculos a fazer dos outros cidadãos de segunda, obrigando-os até a pagarem taxas discriminatórias e humilhantes para poderem viver nas suas próprias terras?"
"Claro que sim", reconheceu Tomás. "Mas quando os cristãos lhes fizeram o mesmo eles não gostaram e, como é evidente, sentiram-se humilhados. Essa humilhação foi a parte negativa, embora talvez pedagógica, da colonização europeia. Mas repare que a moeda tem uma outra face. Os europeus construíram infra-estruturas que eles não tinham, instituíram sistemas escolares e serviços públicos que não existiam e aboliram a escravatura. Se for a ver bem, não há comparação do grau de desenvolvimento das terras islâmicas que tiveram colonização europeia com o das terras islâmicas que permaneceram sob domínio muçulmano. Só os palestinianos criaram sete universidades desde a ocupação israelita em 1967. Compare isso com as oito universidades da imensamente rica Arábia Saudita ou com o atraso do Afeganistão! E isto para não falar no obscurantismo. Só para que tenha uma ideia, a soma de todos os livros traduzidos em todo o islão desde o século ix é de cerca de cem mil, que é exactamente o número de livros que hoje em dia se traduzem em Espanha num único ano!"
"Então qual é a dúvida dos fundamentalistas? Eles não percebem as vantagens da modernização?"
"Os fundamentalistas e os conservadores vêem as coisas de maneira diferente, o que quer que lhe faça? Eles acham que o islão foi ultrapassado pelo Ocidente justamente, por «e ter desviado das leis divinas e, influenciados pelos ensinamentos dos wahhabistas financiados pelo petróleo saudita, julgam que só o regresso às práticas do século vil os poderá pôr de novo na dianteira. Eles não têm uma visão humanitária do mundo, mas uma visão ortodoxa islâmica."
"Qual é a percentagem de muçulmanos que raciocinam dessa maneira?"
"E difícil de dizer. Eu diria que o muçulmano médio quer apenas viver a sua vida em paz e sossego, respeitar Deus e ser feliz. Penso que estes são a maioria. Têm um conhecimento superficial do islão, ignoram os fundamentos coránicos da jibad, mas sabem que não querem viver num país onde se aplique a sharia na íntegra."