O mestre percorreu a cantina com os olhos, observando os reclusos a comer o almoço.
"A maior parte dos irmãos sai daqui quebrada, com medo de voltar a enfrentar os kafirun que se dizem crentes e mandam em nós." O olhar voltou a Ahmed.
"E tu? O que achas que te fez esta experiência aqui na prisão? Também te sentes com medo?"
"Eu? Medo?", rosnou o seu pupilo, o olhar incendiando-se de indignação por tal hipótese ter sido ventilada. "Nunca! Quem julga que eu sou?"
"E então?"
"Saio daqui com raiva! Saio daqui revoltado! Alguma vez aceitarei o que o nosso governo nos está a fazer? Jamais! Como é possível que acredite que eu seja assim tão fraco?" Pousou a mão no peito. "Nós somos crentes e eles perseguem os crentes! Como se atrevem eles? E como se atreve o meu irmão a pensar que eu tenho medo desses... desses cães? Se acha que esta gente do Diabo me fez medo, a mim, engana-se!"
Ayman abriu as mãos num gesto de aprovação.
"Que Alá seja louvado, és um verdadeiro crente!", exclamou. "Perdoa-me por ter duvidado, mas deves saber que só uma minoria reage como tu. Quando submetida à tortura e à clausura, a maior parte dos irmãos quebra. Mas alguns, poucos e corajosos como tu, ganham determinação. São esses a vanguarda do islão, aqueles que marcham pelo oceano da jabiliyya com o archote na mão e guiam a humanidade até Deus."
Ao ouvir estas palavras, a indignação do pupilo afogou-se num carrossel de emoções e deu lugar a uma vaga inebriante de orgulho.
"Se houvesse maneira, também eu ergueria o archote." Bateu no peito. "Também eu!"
Ayman tamborilou os dedos na madeira da mesa à qual estavam ambos sentados.
"Há maneira."
"Qual?"
"A do Profeta, que a paz esteja com ele."
Ahmed estreitou os olhos. "O que está a sugerir?" "A jihad."
O pupilo calou-se. Havia já muito tempo que andava a ponderar o assunto. Desde que começara a perceber realmente o Alcorão e a sunnah do Profeta que se questiqnava »e não seria sua obrigação obedecer às ordens de Alá: espalhar a fé pela pregação quando possível, pela força se a pregação falhar. O envolvimento de Ahmed na Al-Jama'a nunca fora explicitamente abordado entre ele e o seu mestre, mas permanecera sempre implícito, como um fantasma a pairar sobre as conversas entre ambos.
Havia uma coisa, porém, que se lhe afigurava cada vez mais clara: se Ahmed acreditava realmente em Alá e na Sua mensagem, teria de Lhe obedecer. A obediência não era realmente uma opção, mas uma ordem divina. E a ordem instituída nas últimas revelações de Deus ao Profeta era que a humanidade inteira teria de se submeter ao islão. "Combatei-os até que não exista tentação e seja a religião toda de Deus", diz Alá no Alcorão, sura 8, versículo 39.
Combatei-os até que seja a religião toda de Deus!
Por Alá, poderia a ordem ser menos explícita? Como poderia um crente ignorar esta instrução divina?
Deus mandava combater os kafirun até que todos se submetessem!
E ele, Ahmed? Pois se se dizia crente, não deveria ser consequente com a sua crença? Se se submetera à vontade de Alá, não deveria obedecer às Suas ordens? Como poderia ele fingir que essa ordem inequívoca não estava gravada a ouro no Alcorão?
Estava! Ele lera-a! Ele decorara-a! "Combatei--os até que não exista tentação e seja a religião toda de Deus." Se era verdadeiramente crente teria de obedecer, não dispunha de alternativa; a sua vontade e opinião pessoal não contavam para nada.
A vontade de Alá era soberana.
Virou o rosto e encarou Ayman com determinação, a decisão já tomada, a submissão a Deus finalmente completa. "O que tenho de fazer?"
A resposta à pergunta levou duas semanas a ser dada. Ayman explicou que tinha de consultar os irmãos para decidir qual o melhor caminho, pelo que Ahmed ficou a aguardar as instruções. Sentia-se pela primeira vez absolutamente em paz consigo mesmo. Decidira juntar-se à jihad e cumprir as ordens divinas. Por Alá, haveria maior prazer na vida que o de realizar a vontade de Deus?
Os dias passaram e recebeu uma notificação formal a informá-lo da data e da hora em que seria libertado. Seria dentro de setenta e duas horas.
Mostrou a notificação ao mestre, que lhe pediu que tivesse paciência. Em breve teria novidades.
Na véspera da libertação, quando Ahmed estava já no pátio a despedir-se de companheiros de prisão que ocupavam outras celas e que não iria ver mais, Ayman apareceu e fez-lhe sinal de que o seguisse para uma zona discreta junto do muro.
"Os irmãos deram-me a resposta", anunciou-lhe o mestre num sussurro, lançando olhares em volta para garantir que não havia ninguém à escuta. "Já está tudo tratado."
"Então?"
"Queremos que prossigas os estudos." A decisão deixou Ahmed boquiaberto. "Estudos? Quais estudos? Eu quero é combater! Eu quero é juntar-me à jibad!"
Ayman lançou-lhe um olhar de leve reprovação.
"Tem calma, meu irmão. Acalma-te e escuta-me: a seguir ao nome de Deus, sabes qual é a segunda palavra mais usada por Alá no Santo Alcorão?"
Ainda afogado em frustração, o pupilo abanou a cabeça com uma veemência feita de fúria mal contida.
"Não."
"//w", disse o mestre, colando o indicador a> têmporas. "Conhecimento. Em trezentos versículos do Santo Alcorão, Alá exorta os crentes a usarem a inteligência e o conhecimento. O próprio Profeta, que a paz esteja com ele, o afirmou: «A primeira coisa criada por Alá foi o intelecto.»" Bateu com o dedo na testa. "Temos pois de usar a cabeça."
"Está bem, eu uso a cabeça. Mas quero usá-la para fazer a jibad, como Alá ordena aos crentes!"
"E vais fazê-la", assegurou Ayman. "Podes estar tranquilo quanto a isso. Mas primeiro tens de adquirir conhecimentos."
"Que tipo de conhecimentos?"
O antigo professor de Religião voltou a olhar em volta, para se assegurar mais uma vez de que ninguém os escutava. "Engenharia."
Ao ouvir a palavra, Ahmed esboçou uma careta.
"Para quê?"
"Eu lembro-me que, na madrassa, eras muito elogiado pelo professor de Matemática. Suponho que sintas afinidade com essa área, ou estou enganado?"
"Não, estás certo. E depois?"
"Os irmãos dizem que precisamos de engenheiros.
Tu pareces vocacionado para essa área. Portanto, queremos que completes os teus estudos e tires Engenharia."
Ahmed respirou fundo, resignado.
"Muito bem, se essa é a vossa vontade..."
"E essa a vontade dos irmãos, sim."
"Mas garantes-me um lugar na jihad?"
"A seu tempo receberás instruções a esse respeito, inch'Allah. Mas isso só acontecerá quando terminares o teu curso de Engenharia."
"Está bem."
"E já escolhemos o sítio onde vais estudar." Apesar da frustração, Ahmed quase se riu. "Por Alá, isso é que é organização!", exclamou. "Vou para onde?
Espero ao menos que seja no Cairo..." O mestre abanou a cabeça.
"O nosso país tornou-se demasiado perigoso, há muitos polícias nas universidades a vigiar os estudantes. Além do mais, não te esqueças de que tens cadastro. Terás de sair do Egipto."
"O quê?"
"Aqui serias logo apanhado."
"Então quero ir para a Terra das Mesquitas Sagradas", disse, peremptório. "E o único país que aplica a maior parte da sbaria."