Ayman voltou a abanar a cabeça.
"Não", repetiu. "Não vais para a Arábia Saudita, já aí está muita gente. Queremos-te totalmente fora dos circuitos habituais. Temos outro destino para ti."
"Qual?"
"A Europa."
A notícia deixou o pupilo chocado.
"Eu? Para a Europa?" Não queria acreditar no que acabara de ouvir. "Mas... mas vocês enlouqueceram?
Querem-me mandar para junto dos kafirun?"
"Tem calma, meu irmão", pediu Ayman, pondo-lhe a mão no ombro para o sossegar. "O que queremos é mandar-te para um sítio onde ninguém te irá vigiar e onde te sentirás à vontade. O mundo islâmico está cheio de governos jabili que só fazem o que os kafirun querem que eles façam. Não estarias seguro aqui. Precisamos de te enviar para um sítio onde passes absolutamente despercebido." Ahmed esfregou o queixo, pensativo.
"Ir para a Europa é um grande sacrifício", disse.
"Se realmente me querem nas terras dos kafirun, tenho^uma condição. Solicito que me dêem condições para casar."
Ayman abriu a boca, espantado.
"Por Alá, tu tens noiva?"
"Está-me prometida desde os doze anos."
"És uma caixinha de surpresas, meu irmão", exclamou o mestre. "Podes ficar descansado que terás a ajuda da Al-Jama'a. Aliás, o casamento é a forma ideal de te manteres invisível. E... perfeito!"
Ahmed encheu o peito de ar, muito satisfeito com a evolução dos acontecimentos.
"Então estamos de acordo", disse. "Para onde querem que eu vá? Há muitos irmãos a ir para Londres..."
"Justamente, e isso é um problema. Em Londres encontram-se já demasiados irmãos e os kafirun começam a desconfiar. Não podemos mandar-te para lá. Tens de ir para um sítio mais tranquilo, onde passes despercebido."
"O que tem a Al-Jama'a em mente?"
"O Al-Andalus", anunciou o mestre. "Queremos que vás para uma das grandes cidades do califado do Al-Andalus." "O califado de Córdova?" "Sim."
"Querem que eu vá para Córdova?"
Com um sorriso que deixou ver os dentes podres, Ayman abanou a cabeça uma última vez e anunciou então o destino reservado ao seu protegido.
"Al-Lushbuna." "O quê?"
O mestre tirou do bolso uma folha muito engelhada e abriu-a, exibindo-a ao seu pupilo; era um pequeno mapa da Europa. Apontou o dedo deformado e sujo para uma cidade no extremo ocidental da Península Ibérica.
"Os kafirun chamam-lhe Lisboa."
XXXIII
O vulto de Zacarias tinha emergido do Portão Alamgiri, o que significava que o rapaz já devia estar havia algum tempo dentro do forte à espera do seu antigo professor. Já com as intercomunicações restabelecidas Tomás apressou o passo e aproximou-se dele. O rapaz trocou um breve olhar com o historiador e seguiu em frente, como se não fosse nada, atravessando a praça entre o forte e a mesquita.
"Ele está a ir-se embora!", comunicou Tomás pela intercomunicação que Jarogniew lhe instalara na roupa.
"Bluebird, o Cbarlie estabeleceu contacto?"
"Quer dizer... ele viu-me, sim."
"E fez algum sinal?"
Tomás hesitou, os olhos fixos na figura de sbalwar kameez que caminhava à sua frente.
"Não tenho a certeza", disse. "Ele olhou para mim e reconheceu-me, isso é certo. Mas não posso garantir que me tenha feito qualquer sinal. Talvez.
Não sei."
"Siga-o."
O historiador obedeceu às ordens de Jarogniew e pôs-se no encalço de Zacarias. Olhou em redor, à procura de Rebecca e Sam, mas não os viu. A praça não estava tão cheia como dez minutos antes, embora mantivesse algum movimento.
"Bluebird", voltou a chamar Jarogniew. "Qual é a situação?"
"Ele está a caminhar em direcção a um grande portão, situado do outro lado da praça, mas apenas com uma pequena passagem."
"E o Portão Roshnai", identificou a voz ao auricular. "Continue atrás dele."
Zacarias aproximou-se do portão e encolheu a cabeça para passar através da abertura estreita para o outro lado. Tomás seguiu-lhe o exemplo e, ao emergir na rua, viu o antigo aluno espreitar para trás, como se se quisesse certificar de que o homem com quem se ia encontrar permanecia no seu encalço.
Esta troca de olhares encorajou o historiador, que viu nela um sinal claro de que devia prosseguir, pelo que apressou o passo e se chegou mais ao rapaz.
Caminhavam agora pelas ruas estreitas da cidade velha de Lahore. Habituado ao souq do Cairo, Tomás esperava que este sector fosse mais pitoresco, com bancadas por toda a parte e um certo charme exótico pelas ruelas. Mas ali não havia nada disso. A cidade velha era suja e parecia cair aos bocados, com os edifícios degradados e cabos de electricidade pendurados por toda a parte. As ruas estavam enlameadas por condutas de água rotas e esgotos a céu aberto e eram percorridas por motos, mulas, jumentos, carroças, auto-rique-xós e um automóvel ocasional, numa cacofonia de buzinadelas e rádios com o volume no máximo. Não havia ali elegância nenhuma, apenas uma nojeira contínua.
O seu ex-aluno meteu por uma ruela à direita, tão imunda como as outras, e entrou no que parecia ser uma casa de
chá improvisada. Não tinha paredes para o exterior, apenas
cadeiras de plástico e uma enorme vasilha a fermentar leite.
Zacarias sentou-se numa cadeira e disparou olhares em
todas as direcções; dava a impressão de que se sentia acos-sado.
*
"Bluebird, qual é a situação?"
"Agora não! Silêncio nas comunicações!"
Crrrrrr.
Tomás abrandou o passo, entrou no mesmo estabelecimento e sentou-se a duas cadeiras de distância. Viu o rapaz pedir um lassi, uma bebida feita à base do leite que fermentava na vasilha, e seguiu-lhe o exemplo, pedindo outro. Depois ficou sentado em silêncio, à espera do que viesse a acontecer.
"Isto está complicado, professor."
Foi a primeira coisa que Zacarias disse. O antigo aluno falou em português, mas quase sem movimentar os lábios e a olhar para a rua, como se quisesse disfarçar. Quem o visse de longe poderia pensar que estava a cantarolar ou a murmurar uma prece.
Percebendo esta preocupação de esconder que haviam entabulado conversa, Tomás assentou o cotovelo na mesa e deixou cair a cabeça na mão, de modo que a palma lhe ocultasse a boca e ninguém lhe visse os lábios a mexer.
"Então?", perguntou. "O que se passa?"
"Julguei que os tinha despistado. Mas quando estava no forte à sua espera vi um deles. Quase entrei em pânico."
Tomás lançou um olhar para a rua, tentando vislumbrar qualquer figura suspeita, mas nada viu de anormal. Havia pessoas de um lado para o outro e motociclos a passar com grande fragor e muito fumo, mas cada um parecia metido na sua vida.
"Estão a vigiar-te?"
"Sim."
"Porquê?"
"Porque eu sei de mais e porque já lhes disse que não concordava com o que eles andam a fazer."
Mordeu o lábio e revirou os olhos, como se estivesse a repreender-se. "Eu e a minha grande boca! Nunca mais aprendo a estar calado!..."
"Mas sabes o quê, concretamente?"
"Sei que vai haver um grande atentado. Será uma coisa terrível, pior do que o 11 de Setembro."
"Pior ainda?", admirou-se o historiador. "Onde?"
"No Ocidente."
"Sim, mas em que sítio?"
Zacarias abanou a cabeça.
"Isso não sei."
"Na Europa ou na América?" "Apenas sei que será no Ocidente." "E quando será isso?" "Está iminente."
"O que quer isso dizer? Vai ser hoje, amanhã, na próxima semana, daqui a um mês... quando?"
"Iminente quer dizer iminente."
O empregado do estabelecimento aproximou-se e os dois calaram-se. O homem colocou um copo de alumínio diante de Zacarias e entregou outro a Tomás, regressando de seguida para junto da grande vasilha de leite a fermentar.