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Escondem-te num carro e levam-te para uma base militar aqui perto. Depois metem-te num avião da força aérea americana e retiram--te imediatamente do país. E só dizeres."

O rapaz respirou fundo. Era como se o seu corpo fosse um saco de preocupações que se esvaziava.

"Ufa! Ainda bem!" "Então? O que fazemos?"

Zacarias ergueu-se de um salto, de repente cheio de energia e entusiasmo.

"Vamos embora!", exclamou, já sem tentar disfarçar que estava na conversa com Tomás. "Não há tempo a perder." Fez um gesto na direcção do caminho por onde tinham vindo. "Mas primeiro temos de ir ali ao forte."

"Porquê?"

O rapaz atirou uma nota para a mesa e saiu para a rua, acompanhado pelo seu antigo professor.

"Trouxe comigo uma prova." "Que prova?"

"A prova de que se está a preparar um grande atentado. Mas quando estava no forte e vi o gajo da Lashkar-e-Taiba por ali, entrei em pânico e deitei-a numa caixa, não queria ser apanhado na posse dela.

Agora temos de ir lá buscá-la! Quando o senhor vir..."

"Ibn al Kalb!"

O grito insultuoso interrompeu a conversa e paralizou Tomás. Sentiu um vulto negro posicionar-se entre ele e Zacarias, apercebeu-se de uma lâmina a cintilar ao sol e, como num sonho, viu-a despenhar-se sobre o corpo do seu antigo aluno.

"Ahhhh!"

O desconhecido apunhalava Zacarias.

XXXIV

Lisboa chocou Ahmed.

Foi a primeira vez que saiu do Egipto e visitou um país estrangeiro, para mais ocidental, pelo que sentiu um brutal embate ao deparar-se com a diferença entre os dois mundos. Os contactos com os kafirun no souq do Cairo já lhe haviam dado alguns indícios, mas uma coisa era intuir as diferenças e outra ser esmagado por elas.

A novidade que de início mais o espantou, e para a qual não estava verdadeiramente preparado, foi a riqueza que encontrou em Portugal. Os automóveis brilhavam de tão novos que pareciam, os autocarros tinham portas que se abriam automaticamente, as estradas eram impecáveis, não havia papéis nem plásticos espalhados pelos passeios, as pessoas tinham um aspecto bem tratado e dos seus corpos emanavam fragrâncias perfumadas, não se viam bairros degradados nem esgotos a céu aberto nem lixeiras pelos cantos nem revoadas de mendigos, o ar respirava-se limpo e tudo parecia ordeiro e arrumado.

Que contraste com o Cairo!

E que dizer dos comportamentos? Nunca tinha visto tanto kafir de uma só vez, mas o mais chocante foi observar as mulheres a andarem por toda a parte com a pele branca exposta - por Alá, iam praticamente nuas! Viam-seThes os braços, as pernas, o cabelo, os ombros; algumas até vestiam camisinhas tão curtas que expunham a barriga e deixavam mesmo antever o rego dos seios!

"Prostitutas!", vociferou em voz baixa, indignado.

"Todas umas prostitutas!"

E o mais extraordinário é que os homens mal pareciam fazer caso disso; não deram sinais de se incomodar com tamanha falta de vergonha. Via-os até a lidar com as mulheres como se fossem iguais, misturando-se sem pudor. Observou inúmeros casalinhos a andarem na rua de mão dada e, com os olhos que Alá lhe dera, chegara a vê-los beijarem-se na boca em plena via pública! Que imundice!

Sentindo-se afogar naquele mar de imoralidade e degeneração, decidiu procurar refúgio no aconchego de uma mesquita. Disseram-lhe que havia uma a funcionar perto do Martim Moniz e procurou-a, mas por mais que andasse não havia meio de a encontrar.

Deambulou perdido pela Baixa de Lisboa e assustou-se quando viu um polícia aproximar-se dele.

Pensou que ia ser preso e preparou-se para fugir, mas sentia-se paralisado de medo e ficou pregado ao chão. O polícia interpelou-o em português e, muito hirto, Ahmed abanou a cabeça e fez sinal de que não entendia. Após as primeiras palavras confusas, ouviu o guarda mudar para um inglês primário mas perceptível.

"Precisa de ajuda?"

O polícia queria ajudá-lo! No Cairo sempre vira os polícias como repressores agressivos e corruptos, pessoas que deviam ser evitadas a todo o custo. Mas aquele guarda mostrava-se desconcertantemente afável. Desconfiado, Ahmed balbuciou uma desculpa improvisada e afastou-se o mais depressa que pôde, convicto de que haveria ali uma artimanha qualquer.

Que terra aquela!

"Estes Portugueses devem-se fartar de roubar aps crentes", observou após o seu primeiro passeio pela cidade.

Ahmed fora instalado na casa dos Qabir, uma família de muçulmanos de origem moçambicana que vivia em Odivelas. Ninguém suspeitava da ligação do visitante à Al-Jama'a e o acolhimento resultava de uma mera paga de favores antigos.

"Porque dizes isso, meu irmão?", perguntou o chefe da família, Faruk. "Aconteceu alguma coisa?"

"Estou-me a referir a toda esta opulência, a todo este dinheiro que os Portugueses exibem. Isto é gente muito rica, com certeza foram roubar a algum lado."

Faruk riu-se.

"Quem? Nós?" Mais uma gargalhada. "Somos dos povos mais pobres da Europa ocidental! Meu irmão, tens de viajar mais pela Europa para veres o que é realmente riqueza! Há por aí povos muito mais ricos do que o nosso!"

Ahmed cravou os olhos no anfitrião, o esgar exprimindo um misto de incredulidade e escândalo.

"Os outros kafirun são ainda mais ricos? Por Alá, a roubalheira deve ser muita!"

"Não é bem assim, meu irmão. Nós investimos muito na educação e sabemos que a verdadeira riqueza é gerada pelo conhecimento. Se andares por este país ou por toda a Europa, verás que por aqui existem poucas riquezas naturais nas terras. Não há petróleo, não há ouro, não há diamantes." Colou o indicador

às

têmporas.

"Mas

possuímos

conhecimentos.

Aqui no Ocidente sabemos fazer carros, aviões, pontes, computadores... é essa a nossa riqueza."

Ahmed calou-se. Pareceu-lhe evidente que aquela família era desviante e vivia em jahiliyya. Estes supostos crentes estavam de tal modo integrados que até se referiam aos kafirun ocidentais como nós, não eles! Onde já se vira uma coisa assim? Além do mais tinham comportamentos impróprios. Pois não andava a filha mais velha de Faruk, Fátima, vestida de jeans e a exibir impudicamente o rosto e os cabelos pela rua, sujeitando-se aos olhares lúbricos dos kafirun? E que dizer da mulher do seu anfitrião, Bina,

que

às

vezes

parecia

ser

quem

verdadeiramente mandava lá em casa? Como podia Faruk autorizar tais coisas? Porque não as punha ele na ordem? Como se tudo aquilo não bastasse, Ahmed já vira com os seus próprios olhos cervejas no frigorífico daquela casa! Seria possível?

O recém-chegado começou a frequentar a mesquita de Odivelas, mas achou-a demasiado desviante. Onde estavam os apelos à jibad? Onde se exigia a aplicação da sbaria? Onde se ouvia recitar as ordens de Deus no Alcorão para emboscar os idólatras? Em parte alguma! Por Alá, que muçulmanos eram aqueles?

As instruções da Al-Jama'a a Ahmed iam no sentido de que jamais poderia deixar perceber que era um verdadeiro crente. Devia ocultar em todas as circunstâncias o seu pensamento, mesmo diante dos muçulmanos portugueses. Tratava-se de uma medida de segurança, não podia chamar as atenções sobre si uma vez que a organização o queria manter a todo o custo afastado das listas dos crentes identificados pelos serviços secretos ocidentais. Permaneceu por isso em silêncio, mas sentia-se baralhado e indignado com tanta jahiliyya.

A gota de água que fez transbordar o copo da sua paciência ocorreu ao fim da segunda semana, quando jantava com os Qabir. Fátima chegou a casa nessa noite muito excitada com uma notícia que lhe acabara de ser dada. Uma amiga muçulmana fora, um ano antes, obrigada pela família a casar com um desconhecido. Acontece que se descobrira agora que a rapariga tinha um namorado secreto e,apelos vistos, mantivera o contacto com ele mesmo depois de casada.