"Vai para lá uma bronca!...", observou Fátima à mesa.
"Essa miúda já devia ter juízo", disse a mãe.
"Sempre foi uma doidivanas!"
"Oh, já a conheces! Quando se lhe mete uma coisa na cabeça, ninguém a tira. Decidiu que o namorado é o homem da sua vida e não o vai largar de maneira nenhuma! Agora que tudo foi descoberto, acho que ela se vai divorciar do marido e casar com o namorado!"
O alvoroço despertou a curiosidade de Ahmed, que pediu que lhe explicassem a conversa. Fátima resumiu o assunto no seu árabe titubeante e deixou o convidado atónito.
"Ela continuava a ver o namorado?", espantou-se.
"E verdade", confirmou Fátima.
"E agora?"
"E agora... olha, vai divorciar-se."
"Mas... mas... e o adultério?"
"Pois, é chato para o marido", reconheceu ela. "Não se tivesse casado por combinação! Quem anda à chuva molha--se, não é verdade?"
"Mas
houve
adultério!",
insistiu
Ahmed,
escandalizado. "Isso é permitido?"
A família Qabir entreolhou-se.
"Bem... claro que não", disse Faruk.
"Ah, bom! Então qual é o castigo que vão aplicar a essa adúltera?"
O anfitrião disparou um olhar de repreensão à filha por ter trazido aquele assunto para a mesa, considerando a presença do hóspede e os seus hábitos manifestamente conservadores, mas logo encarou o egípcio e forçou um sorriso, algo embara-
çado com o que ia dizer.
"Não haverá nenhum castigo."
Ahmed parou de comer.
"Como?! Não haverá nenhum castigo? Não lhe vão fazer nada?" "Não." "Porquê?"
"Porque... porque aqui o adultério não é crime."
Ao ouvir esta revelação o hóspede engasgou-se e desatou a tossir; tossiu tanto que parecia que os pulmões lhe iam saltar pela boca. Quando por fim recuperou, teve vontade de se levantar e de berrar com toda aquela gente e mandar as mulheres da casa porem o véu e atirar todas as cervejas pela janela e...
Conteve-se.
As suas ordens eram de que não deveria revelar os seus pensamentos. Teria de ocultar a todo o custo que era um verdadeiro crente. Por Alá, não podia deixar de cumprir as instruções da Al-Jama'a.
Mas percebeu que ia ser difícil.
Passou os primeiros três anos em Lisboa a aprender português e a fazer as disciplinas do liceu que lhe permitiriam inscrever-se na faculdade.
Agastado com tanto comportamento desviante, saiu o mais depressa que pôde da casa dos Qabir e alugou um quarto a dois quarteirões de distância. A capacidade de memorização que desenvolvera ao decorar todo
o
Alcorão
na
infância
ajudou-o
consideravelmente e, ao fim desse tempo, falava português com apenas alguns vestígios de sotaque estrangeiro.
A modernidade que via à sua volta, em vez de o inspirar e o levar a questionar tudo o que até ali pensara, serviu apenas para reforçar as suas crenças e suscitar-lhe o maior dos ^essen«men-tos.
Como era possível que os kafirun fossem tão abastados e os verdadeiros crentes tão pobres?
Como pudera Alá permitir tamanha injustiça? A resposta era clara. Os crentes haviam-se desviado do verdadeiro caminho. Tinham abandonado a sbaria e Deus punira-os com aquela suprema humilhação!
Era preciso, pois, voltar às verdadeiras leis islâmicas. Era necessário respeitar integralmente a sbaria e trazer de regresso à Terra a Lei Divina. Só assim se agradaria a Deus e se receberia de volta o Seu favor, de modo que os crentes se tornassem de novo mais ricos e prósperos e poderosos do que os kafirun. Na verdade tornava-se fundamental regressar aos valores do passado para garantir a hegemonia no futuro.
Concluiu com sucesso o secundário e, conforme havia acordado com a Al-Jama'a, concorreu para Engenharia, pondo o seu nome nas candidaturas para o Instituto Superior Técnico e para a Universidade Nova de Lisboa. Foi aceite nos dois cursos, o que não era surpreendente se consideradas as suas excelentes notas do secundário e as relativamente baixas médias de acesso, e acabou por optar pela Nova, sempre era uma universidade.
Foi por essa altura que recebeu uma carta do Cairo. Abriu-a e viu que havia sido remetida por Arif, o seu antigo patrão no souq. Depois de o cumprimentar e dos preâmbulos habituais, o dono da loja dos cachimbos de água queixou-se de que Adara já estava em idade de casar e queria saber se o seu antigo pupilo se mantinha na disposição de cumprir o que ambos haviam acordado anos antes.
Ahmed respondeu de pronto e, em dois meses, os papéis necessários foram tratados pelos pais e pelo noivo. Quando os documentos do casamento foram por fim assinados e tudo ficou pronto, Ahmed deu um derradeiro salto aos correios e enviou para o Cairo um envelope com o bilhete de avião. No momento em que saiu do edifício, não se conteve e soltou um urro e um salto de alegria.
A bela Adara vinha aí!
XXXV
Parecia um filme.
O desconhecido agarrava Zacarias com o braço esquerdo, enquanto a mão direita, que segurava o punhal, caía consecutivamente sobre a sua vítima.
Apunhalou-o uma, duas e três vezes, até que Tomás despertou do seu torpor e, ganhando vida, desferiu um brutal pontapé na cabeça do agressor. Apanhado em desequilíbrio, o homem tombou no chão, largando Zacarias, e encarou o português.
"Kafir!", vociferou.
O desconhecido ergueu-se de um salto, a faca a pingar sangue, e avançou na direcção de Tomás, ameaçador. Crrrrrr.
"Blackbawk! Blackbawk!" Era a voz de Jarogniew ao auricular, gritando freneticamente. "Go! Go!"
No meio da confusão, Tomás lembrou-se de que Blackbawk era o nome de código de Sam. Mas não havia tempo para se preocupar com os outros, a ameaça diante dele era demasiado premente.
Crrrrrr.
"Bluebird! Saia daí! Já!"
O agressor de negro deu um passo rápido, como um felino, e espetou o punhal na sua direcção. Tomás saltou para trás e conseguiu desviar-se.
Aproveitando o desequilíbrio momentâneo do desconhecido, desferiu um novo pontapé, desta vez no estômago do homem, mas ele não vacilou e, lançando-se pelo ar, caiu sobre o historiador.
Crrrrrr.
"Blackhawk!? Go! Go/"
O português conseguiu suster-lhe a mão que empunhava o punhal, mas sentiu o agressor socar-lhe os rins. A dor fê-lo fraquejar e logo viu a lâmina a aproximar-se dos olhos. Fez força para a fazer recuar, mas o mais que conseguiu foi suster-The o avanço. A ponta do punhal estava a um mero palmo de distância e Tomás não tinha muito tempo para reagir.
Crrrrrr.
"Bluebird?"
Com um movimento rápido e desesperado, o europeu encolheu-se de modo a dar uma joelhada no ventre do agressor e, acto contínuo, voltou-se e acertou-lhe com o cotovelo na cara. Numa reacção reflexa, a mão com a faca recuou e Tomás aproveitou para cabecear o homem no rosto. O
desconhecido soltou um urro de dor e, às cegas, numa fúria súbita, lançou o punhal contra a vítima com tal força que quebrou a defesa do inimigo, rasgando-lhe a camisa e passando-lhe a lâmina pelo corpo.
Crrrrrr.
"Blackhawk, o que se passa?"
O português sentiu uma dor aguda irromper-lhe no peito, junto ao coração, e percebeu que tinha sido esfaqueado. Quase entrou em pânico. Onde estava a ajuda?,