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"«Lê, em nome do teu Senhor, que tudo criou, criou o homem de um coágulo. Lê, porque o teu Senhor é generoso, que ensinou pela pena aquilo que o homem não sabia.»"

Acabada a leitura dos versículos primordiais, o mestre estendeu as mãos e recuperou o livro.

"O Senhor ensina pela pena o que o homem não sabe. Ou seja, Alá fala directamente aos crentes através do Alcorão." Passou mais uma vez a mão pela capa ricamente trabalhada do livro. "Quando Maomé voltou para casa, em Meca, sentia-se confuso, mas acabou por perceber que Alá o havia escolhido como Seu mensageiro. Seguiram-se novas revelações, que trouxeram a essência do islamismo. O Profeta explicou-as à mulher, Cadija, que de imediato as aceitou, tornando-se a primeira muçulmana. Depois explicou-as ao primo, Ali, que também as aceitou, tornando-se o primeiro muçulmano. A seguir o Profeta começou a pregar o islamismo em público, mas não foi escutado. Andou treze anos sem que o ouvissem. Pior do que isso, como ele começou a pregar contra os ídolos de Meca, que atraíam peregrinos que faziam prosperar o comércio da cidade, a população revoltou-se contra Maomé. Foi então que um grupo de peregrinos lhe pediu que mediasse um velho conflito entre duas grandes tribos de Medina, os Aws e os Khazraj.

Como a mediação foi bem sucedida, as duas tribos aceitaram o islão e convidaram o Profeta a ir viver com eles. Uma vez que a sua própria tribo em Meca o perseguia, Maomé aceitou o convite e partiu para Medina."

"Foi hoje!", exclamou o pupilo, saltitando de excitação. "Foi hoje!"

O xeque sorriu.

"Sim, hoje é a Hégira", disse, pegando numa chávena de chá e bebericando pela borda. "Faz hoje mil trezentos e cinquenta e quatro anos que Maomé saiu de Meca para atravessar o deserto e ir para Medina." Pousou a chávena na mesa. "E por que razão é a Hégira tão importante?"

O rapaz hesitou, desconcertado. Conhecia a história da Hégira, claro, mas escapava-se-lhe a relevância do evento. A ida de Maomé para Medina era importante porque os adultos diziam que era importante e isso sempre lhe bastara. A pergunta do mestre suscitava-lhe por isso alguma perplexidade.

A Hégira era importante, ponto final. Seria precisa alguma razão?

"Bem...", hesitou, a voz submissa. "A Hégira é importante porque... porque foi o primeiro dia."

"O primeiro dia de quê?"

Ahmed quase embatucou com esta pergunta.

"Do ano?", murmurou quase a medo.

"Sim, claro, a Hégira marca o início do nosso calendário, toda a gente o sabe. Mas porquê?"

O rapaz baixou a cabeça, sem resposta. Aquela pergunta era muito difícil; por mais que pensasse nada lhe ocorria. Vendo o pupilo num beco sem saída, Saad foi em seu socorro.

"A Hégira é importante porque constituiu o primeiro dia do islão", disse, condescendente. "Foi em Medina que Maomé criou a primeira comunidade muçulmana e construiu a primeira mesquita e é por isso que este é o mais santo de todos os dias, o primeiro dos restantes, aquele que assinala o início do ano. Louvado seja o Senhor!"

0. *

Por influência do xeque Saad, Ahmed tornou-se um menino ainda mais pio. Fazia o salat completo, isto é, rezava cinco vezes por dia. Antes falhava por vezes a oração da madrugada, a mais difícil porque lhe interrompia o sono, mas agora deixara de haver falhas; tornara-se tão rigoroso que lhe nasceram entre os olhos uns círculos permanentes sombreados de olheiras, que depois exibia na escola e na mesquita como troféus, prova inequívoca da sua fé.

O salat era apenas o segundo dos pilares do islão, e o seu mestre cuidou que respeitasse os restantes. O

primeiro, a shahada, era o mais fácil, uma vez que não passava de uma mera declaração a afirmar a crença num só Deus e o reconhecimento de que Maomé era o Seu mensageiro. Isso já fizera quando era criança e ainda não entendia o que estava a dizer. Mas o xeque insistia muito no respeito pelo terceiro pilar, a zakat, que consistia em dar esmolas aos necessitados.

"O Profeta, que Alá o tenha para sempre na Sua guarda, disse: «Não é um crente aquele que come à vontade, enquanto o vizinho a seu lado tem fome.»"

Saad fez um gesto em redor, exibindo o quarto onde ensinava o islão a Ahmed. "Tudo isto à tua volta pode pertencer temporariamente à tua família, mas o verdadeiro proprietário é Deus. Devemos por isso exercer sempre a zakat e partilhar entre todos nós os bens de Alá Ar-Rahman, o Beneficente."

Depois desta conversa, Ahmed fez questão de mostrar que se tinha tornado pródigo na zakat e, na oração da sexta-feira seguinte, aproveitou na mesquita um momento em que o xeque cruzou com ele o olhar para entregar a um pedinte estropiado uma nota que guardara de propósito para a ocasião.

Foi um gesto difícil, porque aquele era na verdade todo o dinheiro que conseguira amealhar nos últimos meses, mas acreditava que assim impressionaria o mestre. Quando olhou para Saad, porém, viu-o abanar a cabeça, claramente desagradado com o gesto.

O rapaz ficou surpreendido primeiro e intrigado depois com esta reacção inesperada. Pois não fora ele suficientemente generoso? Afinal aquela nota era todo o dinheiro que possuía; resultara da soma de múltiplos trocos insignificantes que o pai lhe fora concedendo ao longo do último ano e ele guardara com zelo numa caixinha de sapatos. Havia-lhe cus-tado muito entregar todo o seu dinheiro ao pedinte e apenas o fizera porque era um bom muçulmano. Não tinha sido um gesto de um crente respeitador dos ensinamentos do islão? Na verdade, nada via de errado no que fizera. Assim sendo, por que razão o xeque desaprovara aquela zakat? Seria a quantia pequena de mais? Se calhar era necessário dar ainda mais dinheiro... mas qual dinheiro? Ele não passava de um menino que andava na escola, não possuía mais do que aquilo!

A resposta a estas perplexidades veio na aula seguinte.

"Não é um problema de quantidade, cada um dá o que pode", explicou o mestre Saad com suavidade.

"O problema é que a zakat é para ser concedida discretamente."

"Mas porquê, xeque?"

"Para que o pedinte não se sinta envergonhado."

Apontou o dedo peremptório ao seu pupilo. "E para que tu não te sintas superior a ele." Exibiu as palmas das duas mãos. "O

Profeta disse: «A melhor caridade é aquela em que a mão direita dá e a esquerda não tem conhecimento disso.» Lembra-te de que não tens de me agradar a mim nem aos teus semelhantes."

"Então a quem tenho eu de agradar, xeque?"

O mestre Saad ergueu os olhos e apontou para cima.

"A Alá."

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III

Vista do ar, a pequena povoação das Furnas parecia um lugar extraído de um conto de fadas, com as suas casinhas pequenas e muito bem arranjadas ao longo das encostas verdes, os quintais cuidados e os espaços arrumados. Aqui e ali erguiam-se no ar jactos de vapor, sinalizando a forte actividade geotérmica visível nas caldeiras fervilhantes do pequeno povoado.

O helicóptero contornou o casario e pousou num campo ajardinado, entre uma vivenda alva e umas vacas que pastavam no monte ao lado, vagamente incomodadas com o estrepitar das hélices do intruso que ali aterrara. O tenente Anderson foi o primeiro a saltar para fora e estendeu a mão para ajudar Tomás a sair. Afastaram-se do helicóptero em corrida, os corpos curvados e a cabeça baixa, e só pararam diante de um Humvee militar que os aguardava na estrada vizinha. Saltaram para o interior e o jipe arrancou, serpenteando pelas ruas pacatas das Furnas.