"Então?", impacientou-se Sam.
"Calma."
Depois de se certificar de que não havia ninguém em redor a espiá-los, Tomás extraiu a superfície macia que o envelope guardava. Parecia uma folha plastificada, de tamanho A4. Virou-a para si e pousou os olhos nela.
Sentiu um baque.
"Meu Deus!"
Ao ver o historiador arregalar os olhos, Sam não conseguiu conter a curiosidade.
"O que é? O que está aí?"
Lívido, Tomás girou a folha para o americano. Sam apercebeu-se então de que se tratava da imagem ampliada de uma fotografia de telemóvel. A imagem estava escura e algo desfocada, mas o seu conteúdo era bem visível. A foto mostrava uma caixa com caracteres cirílicos impressos à superfície. No topo, entre uma bandeira russa e os caracteres cirílicos, a caixa ostentava um símbolo universalmente reconhecido.
O nuclear.
XXXVIII
Uma desagradável lufada de vento obrigou Ahmed a levantar-se e ir fechar a janela. Espreitou lá para fora e arregalou os olhos, horrorizado. Adara atravessava a rua e, espanto dos espantos, tinha a cabeça totalmente descoberta!
"Por Alá!", exclamou de pasmo. "Enlouqueceu!"
Ahmed não gostava que a mulher saísse sozinha para ir à mercearia, mas não havia maneira de contornar o problema. Encontrava-se num país kafir e não tinha consigo a família para acompanhar Adara sempre que ela precisava de ir à rua. Tivera por isso de se resignar, mas só a deixara sair com a promessa de que resguardaria o rosto e o corpo dos olhares impudicos. E eis que ela desobedecera à ordem.
No momento em que Adara abriu a porta, o lenço já voltara a cobrir-lhe o cabelo. A palma da mão do marido abateu-se-lhe sobre a face uma, duas, três, sucessivas vezes, cobrindo-a de estaladas.
"Sua prostituta! Sua desavergonhada! Como te atreves a desobedecer-me?"
Ahmed ficou descontrolado. Era a primeira vez que batia
na mulher, mas a fúria tinha tomado conta dele.
Adara enco-
lheu-se no canto do hall de entrada do apartamento, os bra-
ços a cobrirem a cabeça, o corpo a tremer e reduzido a uma
bola defensiva.
„. *
"O que foi?", gemeu ela. "O que fiz?"
"Prostituta! Não tens vergonha? Estou farto! Vais aprender, ouviste? Vais aprender!"
"O que fiz? Por Alá, o que fiz?"
"Tu sabes muito bem! Sua cadela! Sua ordinária!
Não prestas para nada!"
Quando o marido acabou de a espancar, Adara permaneceu um bom bocado encolhida no seu canto a soluçar. Aquela mulher era mesmo rebelde, repetiu Ahmed para si pela enésima vez, ofegante, os olhos pousados com despeito naquele corpo trémulo. Mas ele havia de a pôr na ordem, ele havia de a ensinar a ter recato e a comportar-se como uma boa muçulmana!
"Tu não me podes bater!", gemeu ela quando recuperou o fôlego. "Não tens o direito! Só um mau crente bate na mulher!"
"Quem te disse isso?"
"O mullab da Mesquita Central. Ele disse que o Profeta, no seu último sermão, mandou os crentes tratarem bem as suas mulheres!"
"Que eu saiba, trato-te bem..."
"Mas bateste-me! O mullah disse que o Alcorão garante a igualdade de homens e mulheres. Não podes maltratar-me!"
O marido soltou uma gargalhada forçada.
"Ou esse mullah é um ignorante ou está vendido aos kafirun. Onde se encontra tal coisa escrita?"
Ela ergueu os olhos revoltados e fitou-o com rancor.
"No Alcorão, já te expliquei. Eu própria li! Alá diz no versículo 228 da sura 2: «As mulheres têm sobre os maridos direitos idênticos aos que eles têm sobre elas.» Está lá escrito!"
"Tu agora já decoras o Alcorão?"
"Conheço esse versículo."
"Então se conheces deverias citá-lo na íntegra. E
verdade que Alá diz no Alcorão que os direitos são idênticos. Mas logo no mesmíssimo versículo Alá esclarece que «os homens têm predomínio sobre elas»."
"«Têm predomínio»", admitiu Adara. "Embora disponham de «direitos idênticos» aos delas."
"Pois sim. Mas não te esqueças de que Alá estabelece no Livro Sagrado que o testemunho de uma mulher vale metade do de um homem, que a herança que cabe a uma filha é metade da que cabe a um filho e que um homem pode estar casado com quatro mulheres ao mesmo tempo mas nenhuma mulher pode estar casada com mais de um homem ao mesmo tempo. E no versículo 223 da sura 2 está dito por Alá: «As vossas mulheres são vossa pertença.
Desfrutai-as como quiserdes»."
"«Desfrutai-a», diz Alá", argumentou Adara, sempre combativa. "Ele não diz que batas."
"Di-lo na sura 4, versículo 34: «Àquelas de quem temais desobediência, admoestai-as, confinai-as nos seus aposentos, castigai-as.»"
"Lá está", insistiu Adara. "Alá diz «admoestai-as»
e «castigai-as», mais uma vez não diz que lhes batam."
"A que tipo de castigo e admoestação achas tu que Alá se está a referir?"
"Não sei. Mas Ele não fala em bater."
"Falou o Profeta."
A mulher lançou-lhe um olhar
interrogativo. "O que queres dizer com isso?"
"Há um hadith que regista estas palavras do mensageiro de Deus: «Nenhum homem será questionado sobre os motivos pelos quais bate na sua mulher.» E num outro hadith está escrito que o Profeta se queixou de que as mulheres estacam a ficar atrevidas com os maridos e deu-lhes autorização para bater nelas."
"O meu mullah diz que esses ahadith não são totalmente seguros", argumentou ela. Ahmed encolheu os ombros.
"São citados por Abu Dawud", esclareceu, como se tal facto fosse suficiente. "E há um outro hadith de Al-Bukhari em que alguém pergunta ao Profeta se pode bater na mulher e ele responde que sim, acrescentando que se deve dar o correctivo com um miswak."
Adara tinha dificuldade em aceitar tal coisa.
Embora soubesse que jamais conseguiria derrotar Ahmed nos argumentos coránicos, não se deu por vencida.
"Pois que eu saiba não me bateste com nenhum miswak", protestou. "Além do mais, para um crente bater na mulher tem de ter um motivo válido. Não pode bater porque lhe apetece!"
"É verdade."
"Então se é verdade, porque me bateste?"
"Porque me desobedeceste!"
"Eu?"
Ahmed deu um passo adiante, enervando-se, e apontou à mulher o dedo acusador.
"Não te faças despercebida porque eu vi tudo!
Andaste na rua sem estar devidamente tapada, como ordenou o Profeta, como ordenei eu e como convém a uma muçulmana que se dê ao respeito! Ou negas?"
Adara ficou sem saber o que dizer. Era verdade que, nos últimos tempos, se destapava sempre que saía à rua. Estava cansada dos olhares bizarros que os kafirun portugueses lhe lançavam sempre que a viam naqueles preparos e queria integrar-se melhor, circular sem estar a ser observada a todo o momento. Sempre tivera o cuidado de se voltar a tapar quando chegava a casa, mas pelos vistos o marido apanhara-a a infringir as regras.
Ergueu os olhos e voltou a fitar Ahmed com uma expressão de desafio.
"Está bem, destapei-me na rua. E então? Qual é o problema?"
O marido olhou-a com uma expressão de pasmo, não acreditava no que acabara de escutar.
"Qual é o... o..." Abanou a cabeça, como se assim lograsse reordenar o pensamento. "Estás a brincar comigo, mulher?"
"Não, não estou! Qual é o problema de as mulheres se destaparem? Será que me podes explicar?"
"Estás doida? São ordens do Profeta!"
"Mas ele tinha de ter alguma razão para nos mandar cobrir..."
"Então não sabes que os homens... os homens ficam loucos de excitação quando vêem uma mulher destapada? Não sabes o efeito que a visão de uma mulher seminua tem nos homens? Eles ficam cegos de desejo! Eles ficam confusos!"