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"Os judeus dizem que foi em hebraico..."

"Os judeus são uns falsos!", vociferou Ahmed, irritado com a referência ao povo que o Alcorão amaldiçoou por ter quebrado a aliança com Deus.

"Maomé disse: «A última hora só virá depois de os muçulmanos combaterem os judeus e os muçulmanos os matarem até que os judeus se escondam atrás de uma pedra ou uma árvore e a pedra ou a árvore digam: muçulmano, servo de Alá, há um judeu atrás de mim; vem e mata-o.» Assim falou o Profeta e as suas palavras mostram o destino que daremos a esses miseráveis."

Tomás ficou um instante boquiaberto, espantado com a agressiva erupção verbal do aluno.

"Bem...", hesitou. "Isso... enfim, não é assunto para estas aulas."

Pressentindo que perturbara o professor, Ahmed baixou o tom de voz, mas não largou o assunto.

"Sim, mas como pode o senhor ignorar o islão?", insistiu. "É importante que as pessoas aqui neste país conheçam a palavra de Alá."

"Sem dúvida", concordou o professor, um tudo-nada agastado com o tom excessivamente assertivo do estudante. "Mas esta cadeira é sobre línguas antigas e o islão não consta no currículo pelos motivos que lhe indiquei e por mais um ainda: é que eu não sei árabe nem sou perito em assuntos islâmicos."

"Mas devia aprender. Não tem curiosidade?"

"Admito que sim. Aliás, para dizer a verdqde, a»do a pensar em ir estudar árabe para um país islâmico.

Interesso--me muito por criptanálise e o primeiro tratado jamais publicado sobre este assunto está escrito em árabe. Gostaria de o ler na língua original."

"Isso é uma excelente ideia", aprovou Ahmed. "O

senhor professor pode ir para um país árabe, aprender a língua e, já agora, iniciar-se no islão.

Quem sabe se não acabará por se converter?"

"Sim, quem sabe?"

Tomás começou a andar, esforçando-se por se afastar daquele aluno que começava a achar inconveniente, mas ainda lhe ouviu as frases finais.

"Lembre-se de que a história ainda não acabou", lançou Ahmed lá atrás, em jeito de aviso. "Um dia serão os historiadores muçulmanos a analisar o passado cristão da Península Ibérica."

Já a subir as escadas, o professor levantou a mão e acenou. "Adeus."

"O islão estará de volta."

Triiimmm.

Ahmed encontrava-se estendido na cama a reler os ahadith compilados no Sabih Bukhari, a forma que encontrara de se descontrair após mais um dia de trabalho, e resmungou ao escutar a campainha da porta, mas não se mexeu.

"Adara!" chamou. "Vai ver quem é!"

Os textos islâmicos eram a sua única companhia nos tempos livres e não lhe apetecia levantar-se. Já tinha entrado na casa dos trinta anos e andava havia algum tempo a pensar em arranjar mais uma mulher.

Adara infernizava-lhe a vida; ainda por cima por enquanto não lhe dera nenhum filho. Já pensara em dizer-lhe em voz alta por três vezes "eu renego--te!" e assim divorciar-se, mas ia protelando.

Se calhar a melhor solução era arranjar uma segunda mulher, uma rapariga que fosse respeitadora, obediente e boa parideira. Ali em Portugal achava as moças muçulmanas demasiado desviantes, fruto da influência licenciosa dos kafirun, pelo que teria de pedir à família que lhe encontrasse uma virgem no Egipto.

Reconsiderou. Não podia ser. Vivia em Portugal e casar-se com uma segunda mulher poderia arranjar-lhe problemas com os malditos kafirun.

Talvez a solução fosse mesmo divorciar-se.

Triiimmm.

Ao ouvir pela segunda vez o toque, Ahmed revirou os olhos e respirou fundo; lembrou-se de que Adara tinha saído para as compras. Com uma interjeição impaciente, pousou o volume na mesa-de-cabeceira e levantou-se para abrir a porta.

"Faz favor?", perguntou em português.

No corredor do prédio estava um homem de barba farta e vestes brancas islâmicas.

"Ahmed ibn Barakah?", quis saber o desconhecido, evidentemente um muçulmano.

"Sou eu", respondeu em árabe. "Em que posso ajudá-lo?"

"Chamo-me Ibrahim Sakhr", identificou-se o homem. "Venho da parte de Ayman bin Qatada."

Ao ouvir o nome do seu antigo professor, Ahmed abriu-se num sorriso deferente e convidou o desconhecido a entrar no apartamento. Deu-lhe o melhor sofá e ofereceu-lhe chá e biscoitos. Depois das habituais delicadezas preliminares, o anfitrião lançou a pergunta que abriu caminho a que o visitante lhe explicasse o propósito da sua presença.

"Como vai Ayman?"

"Está agora no Iémen."

"A sério?", admirou-se Ahmed. "A fazer o quê?"

m "A servir o islão."

O anfitrião lançou um olhar sonhador pela janela, procurando o espaço para além do horizonte lisboeta.

"Ah, o Iémen!", exclamou. "Que sorte! Ele ainda trabalha para a Al-Jama'a?"

"Claro. Ayman é um bom muçulmano." Ibrahim bebeu um trago de chá. "E tu? Ainda és um bom muçulmano?"

"Eu? Claro que sim."

"Não foste corrompido pela jahiliyya que impera por esta terra de kafirun?" "Nunca!"

"Sabemos que não tens feito em público afirmações de um verdadeiro crente..."

Ahmed quase ficou ofendido com a observação.

"O que queres dizer com isso, meu irmão? Estás a insinuar alguma coisa?"

"Estou apenas a repetir o que ouvi."

"E verdade que tenho evitado fazer declarações que mostrem que estou no caminho da virtude. Mas essas foram as instruções que a Al-Jama'a me deu!

Ayman pediu-me que não me fizesse notado e evitasse que me catalogassem como um verdadeiro crente! Como podes tu agora vir aqui com essas insinuações ofensivas? Por que razão me..."

O visitante pôs-lhe a mão no ombro.

"Acalma-te, meu irmão", disse, a voz serena, o tom pausado. "Estava apenas a testar-te."

"Nem sabes como me custa permanecer calado com as coisas que vejo à minha volta! Há nesta terra gente que se diz crente e bebe vinho e deixa as mulheres exporem-se aos olhares impudicos! Pensas que não tenho todos os dias vontade de os repreender? Mas as ordens da Al-Jama'a foram claras e, com a ajuda de Deus, esforço-me por cumpri-las."

"Eu sei, meu irmão", insistiu Ibrahim. "Quis apenas ter a certeza de que o teu silêncio significava obediência às nossas ordens e que não te tinhas deixado corromper por estes kafirun"

"Espero que nem uma sombra de dúvida tenha restado no teu espírito."

"Fica descansado", assegurou o visitante. "Agora estou certo do que Ayman dizia a teu respeito."

Ahmed pegou no bule fumegante e, esforçando-se por se acalmar, despejou mais chá na chávena do visitante.

"Ainda bem. Às vezes fico com a impressão de que a Al-Jama'a me esqueceu..."

"Não te esqueceu."

"Mas parece! Mandaram-me há mais de quinze anos para aqui e daqui ainda não saí. Para que me querem os irmãos nesta terra de kafirun? Que utilidade tenho eu aqui?"

Ibrahim pegou num biscoito e mergulhou-o na chávena, amolecendo-o no calor do chá.

"Na verdade, temos uma missão para ti."

O anfitrião arregalou os olhos, a esperança súbita a afogar-lhe o ressentimento. Desde que soubera do massacre de Luxor que aguardava este dia.

"A sério?" Olhou para cima, numa prece. "Deus é grande! Ele é Al-Karim, o Benévolo, e As-Samad, o Eternol" Encarou o visitante. "Como é bom saber que não fui esquecido!"

Ibrahim trincou a bolacha amolecida.

"Não foste."

"Que missão é essa que me está destinada, meu irmão?"

"Queremos que te treines para ser um mud\ahedin."