Ahmed nem queria acreditar no que estava a ouvir.
Treinar para ser um mudjahedin?
"Mas... mas isso é o meu sonho! Por Alá, isso é maravilhoso! Não desejo outra coisa na vida!"
"Ainda bem", sorriu Ibrahim, satisfeito por verificar*todo aquele entusiasmo. "Es um verdadeiro crente, não há dúvida." Soergueu o sobrolho. "Tens o passaporte em dia?"
"Está tudo em ordem."
O homem da Al-Jama'a retirou um envelope do bolso do casaco e estendeu-o na direcção de Ahmed.
O anfitrião abriu-o com uma expressão intrigada e viu um maço de dólares e uma lista de contactos, com números de telefone e moradas. Levantou os olhos e fitou interrogadoramente Ibrahim.
"O que é isto?"
"São as pessoas com quem vais ter de falar quando chegares lá."
"Lá onde? Ao campo de treinos?"
O visitante apontou com o dedo rude para um dos endereços mencionados na lista e o seu olhar cintilou. "Ao Afeganistão."
XLI
"Está um tipo a seguir-nos."
Tomás espreitava pelos reflexos da vitrina de uma das lojas da Rua Abovyan, uma das principais artérias do centro de Ierevan, a atenção disfarçadamente presa no vulto que parecia vigiá-los.
"Eu sei", devolveu Rebecca, despreocupada. "Topei-o logo na recepção do hotel." "O que fazemos?" A americana encolheu os ombros. "Nada."
Esta resposta deixou Tomás desconcertado. "Mas...
mas... deixamos o tipo seguir-nos? Não fazemos nada?"
"Tem alguma sugestão? Quer desatar a correr por aí fora? Ou prefere que eu tire a pistola e dispare sobre ele?"
"Bem, não sei... vocês é que estão habituados a lidar com estas situações."
Rebecca puxou Tomás pelo braço, fazendo-lhe sinal de que seguisse em frente.
"Deixe estar, não ligue. Vamos prosseguir o nosso passeio e ver o que acontece."
Tinham saído dez minutos antes do hotel, situado em plena Abovyan, e andavam a deambular diante de um pequeno largo dominado pelo datado Kino Moskva, um- grarrtlioso complexo de cinemas com a assinatura inconfundível do estilo arquitectónico soviético. Aos pés deste monumento da vanguarda comunista encontrava-se uma esplanada com os toldos cobertos por anúncios à Coca-Cola, uma ironia que não escapou a Tomás.
Atravessaram a rua e desceram a Abovyan. Era uma elegante via cheia de lojas e passeios espaçosos.
Por toda a parte se publicitavam os principais produtos da Arménia, com destaque para as carpetes e os brandies, e as pessoas tinham um certo ar de Médio Oriente, embora de cultura marcadamente
ocidental
nas
roupas
e
comportamentos. Não admirava; afinal aquele era o mais antigo país cristão.
Ierevan revelou-se-lhes uma cidade de aspecto globalmente desarranjado, dava a impressão de um grande bazar, embora o Centro tivesse um toque mais ordenado. Sobretudo ali, na Abovyan, a mais elegante das ruas. O passeio que calcorreavam alargou-se consideravelmente, abrindo espaço para uma enorme esplanada dominada por um restaurante chamado Square One.
O português girou a cabeça em redor, como se estivesse a apreciar o local, e pelo canto do olho procurou o vulto que os seguia desde o hotel.
"Ele ainda não nos largou", constatou.
"Deixe-o estar", disse Rebecca, quase indiferente.
"Goze mas é o passeio."
"Mas eu não vim aqui para fazer turismo", argumentou Tomás, num tom entre o protesto e o queixume. "Quando é que nos encontramos com o seu russo?"
"Não sei. Estou à espera que o coronel entre em contacto connosco."
"Ele sabe que estamos aqui?"
"Claro que sabe." Fez um gesto com a cabeça em direcção ao indivíduo que os seguia. "Aliás, suspeito que este tipo faça parte da pandilha."
Num gesto quase reflexo, Tomás virou a cabeça e olhou directamente para o homem.
"Parece-lhe?", murmurou para Rebecca.
"Vamos ver."
A Abovyan desaguou na surpreendente Praça da República, o centro de Ierevan e o coração da cidade. A praça tinha um formato oval e estava cercada por edifícios graciosos, as fachadas de um tijolo amarelo e vermelho e com grandes arcadas; dava a impressão que aquele era o ponto de encontro do imponente estilo arquitectónico soviético com as linhas tradicionais arménias. O centro da praça era dominado por grandiosas fontes de água, para onde os dois visitantes se voltaram, admirando os bailados coreografados dos jactos líquidos.
Pelo canto do olho, Tomás manteve a atenção presa na sombra que os acompanhava. Aquilo poderia ser normal para Rebecca, mas o facto é que ele não estava habituado a que o seguissem na rua, pelo que a situação o punha algo nervoso. Apercebeu-se de que o homem estava a atender um telefonema e, instantes depois, viu-o a guardar o telemóvel e a dirigir--se directamente a eles.
"Atenção!", disse Tomás, tocando no ombro de Rebecca. "O tipo vem para aqui."
A americana voltou-se e encarou frontalmente o homem, que de facto se aproximava de forma ostensiva, sem o mínimo esforço de ocultar a sua presença. Agora que estavam mais perto e o observavam melhor, constataram que parecia arménio, com um nariz proeminente e a cara chupada.
"Quem é Scott?", perguntou o homem num inglês rudimentar.
,. *
"Sou eu", disse ela. "Rebecca Scott."
"Tenho uma mensagem do coronel Alekseev. Ele quer conversar consigo esta noite no CCCP."
Era o acrónimo em russo de URSS, a antiga União Soviética, o que surpreendeu os dois visitantes.
"CCCP?", admirou-se Rebecca. "Não percebo."
"É um estabelecimento na Nalbandyan, ao lado da Praça Sakharov." Apontou na direcção do outro lado da Praça da República. "É aquela rua ali. Esteja no CCCP às dez da noite em ponto." Colou a palma da mão à testa e fez continência. "Boa tarde."
O homem afastou-se, dando claramente por finalizada a sua missão. Tomás ficou a vê-lo ir-se embora, subindo pela Abovyan, até que sentiu o olhar azul de Rebecca colado nele.
"Está a ver?", disse ela. "O coronel não falha."
XLII
Peshawar.
Aquele nome era uma lenda e o inconfundível travo exótico da aventura percorria a grande cidade.
Quantas vezes não lera nos jornais egípcios referências àquele lugar mágico nos relatos da gloriosa epopeia que fora a jibad contra os kafirun soviéticos? Com uma mão na mala e a outra a agarrar um puxador, Ahmed esforçava-se por se equilibrar junto à porta do pitoresco autocarro que dançava pelas ruas de Peshawar, ziguezagueando apinhado de gente por entre o tráfego intenso; ia de tal modo a abarrotar que até tinha passageiros montados no tejadilho. O autocarro faiscava num colorido desconcertante, a chapa tapada por placas douradas ou de alumínio barrocamente pintado, os faróis decorados por pestanas metálicas; parecia um palacete ambulante.
Passaram
por
um
grandioso
edifício
vermelho-acastanhado com cúpulas redondas no topo, ao melhor estilo neomogul, e
Ahmed lançou um olhar inquisitivo ao paquistanês que se espremia ao seu lado.
"E o museu", identificou o homem em inglês.
O autocarro desembocou numa rua incrivelmente caótica e imobilizou-se com um estremeção; havia automóveis por toda a parte a buzinar quase sem cessar, os escapes a libertar nuvens de fumo cinzento, e as pessoas misturayam-s^ por entre as viaturas como formigas. Enervado com a confusão em redor, Ahmed voltou a encarar o seu anónimo companheiro de viagem.
"A mesquita de Mehmet Khan ainda é longe?", perguntou, a impaciência a roer-lhe o estômago. O