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Com um gesto rápido, o homem tapou-lhe a boca e impediu-o de prosseguir.

"Não quero saber", repreendeu-o. "Aqui ninguém diz de onde vem nem qual o seu verdadeiro nome, meu irmão. Tens de arranjar um nome pelo qual queiras ser conhecido e que fique aqui registado."

Ahmed olhou-o, hesitante.

"Bem... confesso que não pensei nisso."

"Pois tens de pensar, meu irmão. Quem chega aqui deixa tudo para trás, incluindo a família e a sua própria identidade. Deixamos de ser pessoas normais e, com a graça de Deus, tornamo-nos mudjabedin"

A palavra tinha uma conotação simbólica tão forte que Ahmed sentiu o coração disparar. Era a primeira vez que alguém lhe chamava mudjabedin! Primeiro ouvira a palavra mukhayyam e agora mudjahedin! Por Alá, a jihad estava mesmo próxima!

"Todos os mudjahedin mudam de nome?", perguntou Ahmed.

"Todos."

"Tu também?"

"Claro."

"Como te chamas aqui?"

"Aqui eu sou Abu Bakr", identificou-se o homem.

Claramente, usava um nome de guerra inspirado no primeiro califa. Abu Bakr acenou com o sobrescrito que continha os documentos que lhe haviam sido entregues. "Agora tens tu de me dizer qual o teu nome porque preciso de identificar este envelope."

Ahmed vidrou os olhos, mergulhando a memória na história do islão, mas não precisou de pensar muito porque depressa identificou a figura histórica que queria reencarnar.

"Já sei!", exclamou. "Já tenho um nome."

"Diz lá."

"Omar ibn Al-Khattab!", anunciou com satisfação.

"Adopto o nome do conquistador do Egipto e de Al-Quds."

Abu Bakr abanou a cabeça.

"Não pode ser, já temos um Omar. Aliás, a maior parte dos irmãos escolheu os nomes dos grandes califas ou dos grandes guerreiros, como Saladino e outros. Tens de ser mais original."

Ahmed mordiscou o lábio inferior enquanto reflectia, a mente em busca de alguém cujo espírito gostasse de encarnar. Não teve de pensar muito.

"Acho que encontrei."

"Quem?"

O visitante inspirou com serenidade e sentiu o espírito do passado glorioso do islão tocar-lhe a alma quando pronunciou o nome que mais admirava, aquele pelo qual iria doravante ser conhecido enquanto mudjabedin.

"Ibn Taymiyyah."

O homem que daí em diante seria chamado Ibn Taymiyyah havia terminado a oração da madrugada três minutos antes quando a porta do quarto se abriu com suavidade e a barba branca de Abu Bakr espreitou pela frincha.

"Está na hora, meu irmão."

Ibn Taymiyyah arrumou a mala debaixo da cama, pegou no saco de viagem e saiu de imediato do quarto.

"Ele já chegou?", quis saber.

"Sim, o teu guia está aqui", confirmou. "Deves evitar falar com ele. Se o guia te mandar fazer alguma coisa, obedeces sem questionar. Nunca lhe faças perguntas. Percebeste?"

"Sim."

Percorreram o corredor e Ibn Taymiyyah viu um rapazinho de tez muito morena e cabelo negro gorduroso, obviamente um afegão, parado no hall de entrada do apartamento. Abu Bakr apresentou-os e o guia fez ao visitante sinal de que o seguisse.

Depois de se despedir de Abu Bakr, Ibn Taymiyyah saiu para as escadas, sentiu a porta do apartamento fechar-se atrás dele e, numa questão de minutos, já circulava no encalço do guia pelo Bazar Khyber, ainda sossegado àquela hora matinal.

Junto ao passeio estava estacionada uma pickup com homens, mulheres e galinhas na carga. O guia fez a Ibn Taymiyyah sinal de que entrasse. O

visitante saltou para a parte de trás, a carrinha arrancou com um rugido e, aproveitando o facto de as ruas da cidade ainda estarem semidesertas, abandonou Peshawar em dez minutos.

A pickup meteu pela estrada da lendária Passagem do Khyber, parando apenas nos sucessivos checkpoints erguidos pelas diferentes milícias tribais. A viagem prolongou-se por algumas horas, incómoda e aos solavancos, até que, perto de Sadda, a carrinha abandonou a estrada principal e meteu por um atalho. Parecia que tinham entrado num caminho de burros.

Foram assim a saltitar durante vários quilómetros no meio da poeira. Com a pickup sempre em marcha, ao fim de algumas horas o guia apontou para uns montes áridos à direita e anunciou:

"Afghanistan!"

Ibn Taymiyyah colou os olhos aos montes, fascinado. Depois do que os mudjahedin haviam feito aos kafirun russos, considerava aquela terra sagrada. Havia anos que ouvia falar do Afeganistão, os relatos das grandes batalhas vitoriosas enchiam-lhe a imaginação, e por fim ali estava ele à beira de abraçar aquela terra abençoada!

Alguns minutos volvidos, a estrada confluiu para um largo com uma grande árvore e várias carrinhas estacionadas. A pickup imobilizou-se ao lado das outras e toda a gente saltou lá para fora. Sem perceber bem o que se estava a passar, mas vendo que o guia também se apeara, Ibn Taymiyyah seguiu--lhe o exemplo. As costas doíam-lhe e sentia as pernas doridas, pelo que fez exercícios para distender os músculos.

"Onde estamos?", perguntou Ibn Taymiyyah em árabe enquanto exercitava o tronco.

O guia afegão fez sinal de que não entendia. Ibn Taymiyyah repetiu a pergunta em inglês, mas obteve a mesma resposta. O visitante percebeu que teria de tentar de outra maneira.

"Afghanistan?", perguntou.

O guia apontou para umas viaturas estacionadas num outro largo, para lá das árvores, e disse qualquer coisa em pasto. Havia pessoas a cruzarem-se num caminho entre os dois largos e todas elas passavam por baixo da grande árvore. Ibn Taymiyyah olhou melhor e detectou dois vultos à sombra da árvore. Estavam vestidos com shalwar kameez negras, a farda da polícia paquistanesa.

Foi nesse instante que percebeu.

"A fronteira!", exclamou. "Isto é a fronteira!"

Seguiu o guia e os outros elementos da sua pickup em direcção à árvore. Apercebeu-se de que os dois polícias paquistaneses inspeccionavam as pessoas que passavam nas

duas direcções carregadas com sacos e que todas vinham

com

shalwar

kameez

andrajosas.

Compreendeu nesse instante por que razão Abu Bakr não aceitara os trajes que ele havia adquirido no bazar; se tivesse ido para ali com uma shalwar kameez novinha em folha, sem dúvida teria sido notado.

O guia olhou para ele e, com dois dedos a simular pernas que andavam, deu-lhe a entender que deveria caminhar sem parar. Ibn Taymiyyah obedeceu e integrou a fila sem olhar para os polícias. Viu o guia aproximar-se dos paquistaneses, entregar-lhes uma mão-cheia de rupias para que não fizessem perguntas e retomar a marcha, aparentemente despreocupado.

Lá à frente, do outro lado, estavam mais pickups; pareciam táxis à espera dos clientes. Caminharam na sua direcção, mas Ibn Taymiyyah percebeu que havia homens de turbante branco armados com AK-47 que o estavam a vigiar. Olhou melhor e apercebeu-se de que não eram homens, mas rapazes. Pareciam muito novos, nenhum deles tinha mais de quinze anos, e exibiam uma expressão desconfiada no rosto.

Também o guia parecia incomodado com a presença daqueles rapazes armados. Baixou a cabeça e, dirigindo-se discretamente a Ibn Taymiyyah, pronunciou a palavra que de imediato tudo esclareceu.

"Taliban."

Estavam no Afeganistão.

XLIII

A noite caiu quente e uma estátua de Andrei Sakharov no meio da pequena praça mostrou-lhes que se encontravam no sítio certo. Tomás olhou para a estátua e considerou-a adequada para aquele momento. Afinal Sakharov era o pai da bomba atómica soviética, o homem na origem remota dos caracteres cirílicos que se encontravam na caixa que Zacarias havia fotografado no Paquistão.