Após o pequeno-almoço, todavia, as coisas acalmavam um pouco no campo. Seguia-se uma lição militar num pequeno edifício perto da cantina, onde o instrutor de armas, um eritreu chamado Abu Nasiri, lhes apresentava o diferente armamento em geral utilizado pelos mudjahedin e expunha as suas especificações, incluindo pormenores sobre as respectivas munições.
Logo na primeira lição, Abu Nasiri exibiu uma pistola com um formato característico que todos se habituaram a ver nas mãos de oficiais alemães nos filmes americanos da Segunda Guerra Mundial.
"Sabem o que isto é?", perguntou ele.
"Uma Luger", respondeu de imediato um instruendo checheno, obviamente fascinado por aquela arma.
Abu Nasiri rodopiou a pistola na mão.
"Na verdade chama-se Parabellum", explicou.
"Escolhi-a para esta primeira aula, não só porque é muito famosa, mas sobretudo por causa do nome, Parabellum. Sabem o que significa?"
Ninguém sabia.
"E latim", disse. "A empresa que inventou a Luger tinha como motto a frase em latim Si vis pacem, para bellum. O que quer isto dizer?"
"Qualquer coisa sobre a guerra", arriscou um recruta de aspecto argelino, embora proveniente de França. "Bellum em latim, bélique em francês."
"Isso mesmo, tem a ver com a guerra", assentiu Abu Nasiri. "Mas qual a tradução exacta do mottoV
Como era previsível, não obteve resposta.
"Si vis pacem, para bellum significa: se queres, a pa*, prepara-te para a guerra." Acenou com a pistola. "E um motto muito apropriado para um mudjabedin, não acham? Embora deva ser reformulado, claro. Um guerreiro do islão diria: Si vis islam, para jibad; ou: se queres o islão, prepara-te para a jibad."
Depois da Parabellum, Ibn Taymiyyah aprendeu a manejar outra pistola alemã, a Walther PPK, seguindo-se as russas Tokarev TT e Makarov PM.
Das pistolas, Abu Nasiri passou de seguida para a mais famosa arma de assalto do mundo, a Kalasbnikov
AK-47;
depois
para
as
pistolas-metralhadoras, como a Uzi, e as metralhadoras ligeiras, designadamente a Degtyarev DP; as pesadas PK e PKM, alimentadas por cintos de munições; e as ultrapesadas Dusbkas, tão potentes que tinham de ser transportadas por carrinhos.
Para além das aulas teóricas havia exercícios para testar cada uma das armas. O grupo ia para um vale das redondezas praticar exercícios de fogo real e as tardes eram assim preenchidas com estampidos sucessivos. Da primeira vez que ouviu uma Dusbka ser disparada, Ibn Taymiyyah pensou que ensur-decia; a detonação reverberou pelas montanhas e os recrutas quase fugiram da arma. Também testaram róquetes antitanque de fabrico soviético, em particular as sucessivas versões da RPG.
Nos exercícios de tiro, Ibn Taymiyyah aprendeu a montar e desmontar as armas de olhos fechados, a respirar quando fazia pontaria e a efectuar cálculos de trajectória de balas e de granadas em função da distância e do vento. Na verdade, e apesar das suas limitações na parte dos exercícios físicos, revelou-se um instruendo de topo na precisão de tiro e na manutenção das armas; era capaz de montar e desmontar uma Kalasbnikou em setenta segundos, quando a maioria dos companheiros o fazia em dois minutos.
"Masha'allah, Ibn Taymiyyah", ronronou Abu Omar aprovadoramente quando lhe detectou o talento.
"Mashaallah"
Como bom engenheiro, Ibn Taymiyyah gostava de toda a parte da instrução que envolvia o cálculo de tiro e de manejo das armas. Mesmo os sons das detonações a ecoar pelas montanhas e pelos vales, que antes o impressionavam, se haviam tornado familiares.
No campo desenvolveu-se um espírito de camaradagem entre os recrutas, como se todos fossem realmente irmãos, unidos pela fé e por aqueles laços invisíveis que aproximam os homens quando o mundo os ameaça. Para eles só o presente contava e o sentimento de irmandade era o aço que consolidava o grupo. O problema é que estavam proibidos de falar sobre a sua verdadeira identidade e as causas regionais em que se encontravam envolvidos. Era uma medida de segurança sensata, claro, mas deixava Ibn Taymiyyah algo frustrado; queria saber mais sobre os homens pelos quais se sentia disposto a dar a vida.
Havia, porém, coisas que transpareciam em pequenos gestos ou palavras soltas. Observando com atenção o comportamento de cada mudjahedin, percebeu que os chechenos e os tadjiques tinham abundante experiência de combate, enquanto os sauditas se revelavam os mais preguiçosos. Havia até uns que eram gordos e indolentes, mas com quem os instrutores mostravam uma especial deferência; tratava-se decerto de importantes financiadores da jibad.
As lições tácticas eram, para além das corridas, o ponto fraco de Ibn Taymiyyah. Para compensar, revelou grande destreza no manejo de explosivos, mais uma vez graças à sua formação de engenheiro.
Mexia em dinamite como se o fizesse desde criança, embora o seu interesse residisse, sobretudo nos explosivos plásticos, em particular o Semtex, que se distinguia dos outros por ser quase completamente indetectável. Aprendeu a armar e desarmar minas e a armadilhar objectos.
Com os seus conhecimentos de engenharia chegou até a entrar em debate com o instrutor, Abu Nasiri, sobre a parte química e física dos explosivos, incluindo a composição e reacção química característica de cada um deles. Esta matéria apaixonava tanto Ibn Taymiyyah que ele passou noites com o instrutor a produzir nitroglicerina, pólvora negra, RDX, Semtex, TNT e outros explosivos com base em produtos facilmente adquiríveis em lojas, como café, açúcar, fósforos, limões, fertilizantes, lápis, produtos de limpeza, areia, baterias, óleo de milho e tinta, todos bens que continham componentes essenciais para a produção dos diferentes explosivos.
A coroa de glória do instruendo de Lisboa ocorreu no dia em que conseguiu fabricar uma bomba a partir da sua própria urina.
"E raro ver um mudjahedin tão habilidoso com os explosivos", observou Abu Nasiri, verdadeiramente impressionado. "És um fenómeno, meu irmão!"
Ibn Taymiyyah destacou-se tanto nesta área que passou a ter autorização de frequentar as grutas onde era guardado o arsenal para ir buscar munições ou explosivos. Tratava-se de cavernas cavadas na encosta da montanha sobranceira ao campo. As entradas eram estreitas, só tinham um metro de largura, e era preciso rastejar para entrar; mas, uma vez lá dentro, as grutas abriam-se em enormes galerias.
A primeira caverna estava pejada de munições, eram milhares e milhares de balas e granadas armazenadas em caixas de madeira empilhadas até ao tecto; muitas delas tinham estampados na madeira números e caracteres cirílicos. A segunda caverna, aquela que Ibn Taymiyyah mais visitava, guardava milhares de explosivos igualmente armazenados no mesmo tipo de caixa; só que, em vez de inscrições em caracteres cirílicos, apresentavam também rótulos que as identificavam como sendo oriundas de Itália e do Paquistão.
"E a terceira caverna?", perguntou ao fim de dois meses no campo, sentindo já confiança suficiente para interpelar o responsável de Khaldan. "O que se guarda lá?"
Abu Omar, sempre cioso da sua responsabilidade em gerir o mukbayyam, fez um ar grave.
"Não podes ir aí."
"Porquê?"
Omar abanou a cabeça.
"Porque não podes."
O conteúdo da terceira caverna deixou Ibn Taymiyyah a morder-se de curiosidade e a proibição aguçou-lhe o interesse. O que raio estaria lá de tão importante que merecesse tanto secretismo?