"O que tinham esses homens de especial?"
"A sua nacionalidade."
"Não me diga que eram árabes..."
"Chechenos." O homem do FSB levou a mão ao bolso e tirou uma fotografia de um homem moreno com aspecto de ser da região do Cáucaso. "Um deles chama-se Ruslan Markov e era muito activo na guerrilha. Temos até uma pasta sobre ele."
Rebecca e Tomás debruçaram-se sobre a fotografia, como se o rosto que ela mostrava lhes pudesse dar respostas.
"Acha que foi este tipo?"
"O que lhe parece?", perguntou Vladimir. "Os Chechenos são muçulmanos e muitos deles são fundamentalistas, com ligações a outros movimentos islâmicos. O Markov é checheno, tinha contactos com grupos fundamentalistas e sabemos que esteve envolvido na execução de reféns na Chechénia e no Sul da Rússia. Os nossos registos indicam que ele passou com um bando de chechenos pela fronteira mais próxima de Mayak
horas antes de serem encontrados os corpos dos soldados, dos funcionários e dos seus familiares.
Considerando toda esta informação, o que conclui?"
Rebecca nem retorquiu, tão óbvia era a resposta.
Em vez disso, indicou a fotografia que mantinha na mão.
"Onde está este Markov?"
"A informação que temos é que ele já morreu^
Parens que os nossos homens o abateram num combate nos arredores de Grozny."
"Damn!", praguejou ela.
"Por ele já nada saberemos, mas não é difícil adivinhar o que terá acontecido depois do roubo de urânio enriquecido em Mayak. Os chechenos largaram os corpos dos guardas, dos funcionários e dos seus familiares, estes provavelmente usados para fazer chantagem, fugiram para o Cazaquistão e desapareceram do mapa. Ali ou em qualquer outro ponto, naquele mesmo dia ou algum tempo mais tarde, acabaram por vender o urânio enriquecido à Al-Qaeda. Nada mais simples."
A americana girou a fotografia entre os dedos nervosos, indecisa quanto ao que fazer a seguir. "E
agora?", perguntou ela.
Percebendo que o briefing do homem do FSB em Ozersk havia terminado, Tomás ergueu-se e puxou por Rebecca.
"Agora só há uma coisa a fazer", disse o português, rompendo o seu longo silêncio. "Temos de localizar essa caixa."
XLVIII
O jipe de fabrico russo saltitava sem parar pelos caminhos poeirentos e montanhosos do Sul do Afeganistão, a terra amarela e castanha recortada pelo céu azul e branco de nuvens. Ao volante ia um mudjabedin com gosto pela aceleração e atrás, ao lado de Ibn Taymiyyah, seguia um segundo mudjakedin armado com uma Kalashnikov. O jipe dava solavancos incríveis nos buracos da estrada, mas isso não impedia o condutor de continuar a carregar no acelerador a fundo.
Ao fim de duas horas, o jipe deparou-se com uma barreira na estrada e os mudjahedin pegaram de imediato nas armas, preparados para a emboscada, mas logo reconheceram os rapazes em shalwar kameez e turbantes brancos que operavam o posto de controlo. Embora tensos, os ocupantes do jipe voltaram a pousar as armas.
"Taliban", disse o motorista, a voz um tudo-nada irritada.
Os rapazes do posto de controlo inspeccionaram os documentos muito devagar e leram cada papel com enorme aten
ção, revirando as folhas como se elas ocultassem segredos. Quando se deram por satisfeitos, um deles extraiu do bolso uma pequena cassete áudio e disse algo de imperceptível em pasto ao motorista. O
mudjabedin suspirou, enchendo-se de paciência, e pôs a cassete no gravador do carro.
Seria música?, interrogou-se Ibn Taymiyyah. De imediato teve a resposta. Dos altifalantes do jipe começou,a sai» uma voz cavada a recitar versículos em árabe antigo. Prestou atenção e percebeu que era a primeira sura do Alcorão.
Os talibãs sorriram em aprovação e, com um gesto, mandaram-nos avançar.
"Por Alá, são mesmo crentes", observou Ibn Taymiyyah quando se afastavam já do posto de controlo, voltando a cabeça para observar os vultos que iam desaparecendo por entre a nuvem de poeira levantada pelo jipe.
O mudjabedin que estava com ele assentiu.
"Às vezes até exageram", observou com acidez.
"Exigem coisas que Alá não ordenou no Santo Alcorão ou através da sunnab do Profeta."
"Tais como...?"
O mudjabedin apontou para o leitor de cassetes de onde continuavam a jorrar versículos coránicos.
"Olha, a obrigatoriedade de ouvirmos o Santo Alcorão em viagem, por exemplo. Onde está exigida tal coisa no Livro Sagrado? Em que hadith está o Profeta, que a paz esteja com ele, a determinar tal preceito?"
Ibn Taymiyyah conhecia o Alcorão de cor e a maior parte dos ahaditb credíveis e sabia que o mudjabedin tinha razão. Em ponto algum se exigia tal coisa dos crentes. Aqueles talibãs eram mesmo uns exagerados!, concluiu; estavam em desvio. Mas sabia que não era boa política dizer mal dos anfitriões; os mudjabedin precisavam deles para poderem continuar a preparar a jihad nos mukhayyam e por isso tinham sempre o cuidado de evitar tecer observações críticas em voz alta.
Isto não impediu o motorista de, ao assegurar-se de que os afegãos já haviam ficado bem lá para trás, se inclinar sobre o rádio e desligar a cassete. No momento em que a recitação foi interrompida, os três homens do jipe riram-se, divertidos com aquela pequena revolta contra os talibãs, como se aquele gesto reproduzisse a vontade comum.
O incidente criou uma afinidade indefinida entre Ibn Taymiyyah e os mudjahedin que o levavam. Era um sentimento tão volátil como uma pena ao vento, mas o facto é que perdurou durante alguns momentos. Aproveitando a atmosfera benigna que se instalara no jipe, o recruta arriscou uma pergunta.
"Para onde vamos?"
"Para o Ninho da Águia", explicou o mudjahedin que seguia ao lado dele. "O que é isso?"
"E a nossa base nas montanhas." Deixou passar uns instantes e depois acrescentou, como se adicionasse um post scriptum: "E lá que está o xeque."
Ah, Bin Laden!, pensou o recruta, de repente excitado outra vez com a perspectiva do encontro.
"O que me quer ele?"
"Desconheço", devolveu o mudjahedin. "A seu tempo o saberás, inch'Allah!"
Ibn Taymiyyah ficou a ver a estrada, os olhos perdidos no pensamento.
"Vocês conhecem o xeque há muito tempo?"
"Desde a guerra contra os Russos."
"E como é ele?"
"Um dos melhores homens do mundo, que Alá o proteja e
o guie. Um crente muito pio. Se todos fossem como ele, meu
irmão, podes estar certo de que o islão já mandaria no mundo
e os kafirun encontrar-se-iam todos submetidos à vontade de
Alá. O xeque é o emir de vários mukhayyam que temos
espalhados aqui pelo Afeganistão, incluindo Khaldan, onde te
fomos buscar."
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"Sim, eu sei. É por isso que fico admirado por uma figura tão importante me querer conhecer. Eu não sou ninguém."
"Es um crente. Por isso és importante."
"Sim, mas há milhões de crentes em todo o mundo.
Por que razão quer ele falar comigo em especial?"
"O motivo exacto não sei, meu irmão. Mas, conhecendo o xeque como conheço há tantos anos, há uma coisa de que eu tenho a certeza."
"O quê?"
O mudjahedin deixou o olhar espraiar-se pela paisagem amarela e árida do Afeganistão.
"Se ele te chamou com tanta urgência é porque se vão passar grandes coisas", disse, deixando o olhar deslizar para o seu passageiro. "Espera-te uma missão muito importante."
Uma carrinha de caixa aberta irrompeu subitamente na estrada com grande aparato, pondo-se ao lado do jipe e fazendo Ibn Taymiyyah dar um salto de susto. Para além do motorista, a carrinha tinha três homens na caixa, dois a manejar um lança-róquetes e o outro agarrado aos manípulos de uma metralhadora assente numa pequena plataforma. Parecia-lhe que iam abrir fogo à queima-roupa contra o jipe.