— Claro. E... obrigado, Ronald.
À guisa de resposta, Hoag apertou o braço de Struan, antes de pegar seus pertences e se retirar.
Sozinho de novo, Struan deixou que as lágrimas felizes escorressem por seu rosto e as lágrimas o embalaram ao sono. Sentia-se descansado quando acordou, pela primeira vez revigorado, e permaneceu imóvel, regozijando-se pelo fato de ter-se levantado... com ajuda, é verdade, mas ficara de pé, era um começo, e agora contava com um aliado de verdade.
Do lugar em que se encontrava, um pouco virado para a esquerda, podia olhar pela janela, na direção do mar. Amava o mar e também o odiava, nunca se sentiu à vontade nele, temendo-o porque era incontrolável e imprevisível, como no dia ensolarado em que os gêmeos e o contramestre se distanciaram da praia num bote por uma centena de metros, uma onda súbita virara a embarcação, e uma correnteza os arrastara, todos bons nadadores, os gêmeos nadavam como os peixes, mas mesmo assim se afogaram, só o marujo se salvou. O choque deixara-o arrasado e quase matara seu pai. A mãe entrara num de seus comas ambulantes, dizendo a todo instante:
— É a vontade de Deus. Devemos continuar.
Não vou pensar em meus irmãos, nem em Dirk Struan, disse ele a si mesmo, contente por se encontrar em terra, são e salvo. Mas nosso passado está ligado ao mar, de uma forma inexorável, e nosso futuro também. É a nossa força suprema, nos clíperes e vapores... e na China.
O Japão é um pequeno mercado, interessante, mas pequeno, nunca poderá se comparar com a China. Podemos ganhar dinheiro aqui, sem dúvida — com armamentos e navios. A habilidade britânica com certeza proporcionará altos lucros. Direi a Jamie para aceitar a encomenda de Choshu. Vamos deixar que eles se matem, quanto mais depressa melhor. A hesitação de Sir William, esperando pela aprovação de Londres para a guerra, é uma estupidez. Se dependesse de mim, ordenaria a eles que entregassem os assassinos e pagassem a indenização imediatamente, ou amanhã haveria um estado de guerra entre nós, e o primeiro ato seria a destruição de Iedo. Nunca perdoarei os desgraçados!
O horizonte chamava. Muito em breve, terei de voltar a Hong Kong para assumir o comando. Daqui a uma semana ou por aí. Não há pressa. Disponho de tempo suficiente.
Que horas são agora?
Não havia necessidade de se virar para olhar o relógio. O ângulo do sol indicava que era mais ou menos meio-dia, e Malcolm pensou que normalmente pediria um belo e excelente rosbife, pastelão de Yorkshire, com molho de carne e batatas cozidas, uma ou duas tigelas de cubos de galinha assada e arroz misturado com legumes, e outros pratos chineses que Ah Tok prepararia, e ele adoraria... por mais que sua mãe, o irmão e as irmãs os desdenhassem como insossos, sem nada de nutritivos, talvez venenosos, e apropriados apenas para pagãos...
Um som de leve. Angelique se achava encolhida na poltrona, ofuscada por seu tamanho, o rosto molhado de lágrimas, e mais infeliz do que ele jamais a vira.
— Por Deus, o que aconteceu?
— Estou arruinada!
As lágrimas recomeçaram a escorrer.
— Mas do que está falando?
— Recebi isto pela correspondência!
Ela se levantou, entregou-lhe uma carta, tentou falar, não conseguiu. O movimento súbito de Struan para pegar a carta provocou-lhe uma dor intensa, e só com muito esforço é que pôde evitar um grito.
O papel era verde, como o envelope, a carta datada de 23 de setembro, Hong Kong, o cabeçalho da Guy Richaud, Richaud Frères, e escrita em francês, que Struan podia ler muito bem:
Querida Angelique: Às pressas. O negócio sobre o qual lhe escrevi antes não correu muito bem, meus sócios portugueses de Macau me enganaram, e perdi muito. Todo o meu capital atual desapareceu, e você pode ouvir mentiras espalhadas por inimigos, de que me encontro incapaz de obter novos acertos bancários, e por isso a companhia se encontra agora nas mãos dos credores. Não acredite neles, o futuro é promissor, não precisa ter medo, está tudo sob Controle. Esta carta segue pelo navio de correspondência de amanhã. Hoje, tenho uma passagem reservada no vapor americano Liberty, para Bangkok, onde me prometeram um novo financiamento, de fontes francesas. Escreverei de lá, e continuo sempre como seu devotado pai.
P.S. A esta altura, você já deve estar a par da triste mas esperada notícia sobre Culum Struan. Acabamos de ser informados sobre o vil ataque dos japoneses a Malcolm. Espero que ele não tenha ficado gravemente ferido. Por favor, transmita-lhe meus votos de felicidade, e minha esperança de que tenha uma rápida recuperação.
A mente de Struan virou um turbilhão.
— Por que está arruinada?
— Ele perdeu todo o meu dinheiro — choramingou Angelique. — É um ladrão; agora não tenho mais nada no mundo. Ele roubou tudo o que eu tinha... Oh, Malcolm, o que vou fazer?
— Angelique, Angelique, escute! — Ela parecia tão desamparada, tão melodramática, que Struan quase riu. — Pelo amor de Deus, escute! Não tem problema. Posso lhe dar qualquer dinheiro que qui...
— Não posso aceitar seu dinheiro! — balbuciou ela, entre os soluços. — Não é direito!
— Por que não? Casaremos em breve, não é mesmo?
O choro cessou.
— Nós... é mesmo?
— É, sim. Faremos o anúncio hoje.
— Mas meu pai é... — Angelique fungou, chorosa, como uma criança. — André me disse que tinha certeza de que nenhum negócio havia em Macau, ou em qualquer outro lugar, e nunca houve. Parece que o pai era um jogador e deve ter perdido tudo no jogo. Ele tinha prometido a Henri... Henri Seratard... que pararia de jogar e pagaria suas dívidas... Todos sabiam, menos eu. Oh, Malcolm, eu rne sinto tão horrível que poderia até morrer! O pai roubou meu dinheiro, depois de jurar que o guardaria em segurança!
Outro acesso de choro, ela saiu correndo, ajoelhou-se ao lado da cama, comprimindo o rosto contra a colcha. Com extrema ternura, Struan acariciou seus cabelos, sentindo-se forte, no comando da situação. A porta foi aberta nesse instante, e Ah Tok entrou.
— Saia! — berrou Struan. — Dew neh loh moh!
Ela se retirou no mesmo instante. Genuinamente assustada, Angelique se comprimiu ainda mais contra a colcha. Nunca testemunhara antes a ira de Malcolm, que continuou a acariciar seus cabelos.
— Não se preocupe, minha querida. Não se preocupe com seu pai. Verei o que posso fazer para ajudá-lo mais tarde, mas agora não deve se preocupar, pois cuidarei de você.
A voz era cada vez mais terna. Os soluços de Angelique foram se desvanecendo, um vasto peso saindo de seus ombros, agora que lhe contara a verdade, dera a notícia antes que ele a ouvisse de outra pessoa... e ele parecia não se importar!